Por: Jessé Torres Pereira Júnior
Sumário:
1. Histórico.
2. A questão constitucional de sempre: norma geral ou procedimental?
3. Relação com o regime da Lei nº 8.666/93: “subsidiariedade”.
4. O objeto do pregão: compras e serviços “comuns”.
5. O pregão e os tipos de licitação: conciliação e exclusão.
6. O procedimento do pregão: afinidades e particularidades em face das licitações do tipo menor preço.
1. Histórico
A Medida Provisória nº 2.026, de 04.05.2000, publicada no DOU de 05 do mesmo mês, instituiu modalidade nova de licitação, a que chamou de “pregão”, definindo-a como apropriada para a “aquisição de bens e serviços comuns”.
Os profissionais que militam, dentro ou fora da Administração Pública, com as licitações e contratações desta estavam na expectativa da novidade desde que o governo federal, em fevereiro de 1997, fez veicular no diário oficial, para receber sugestões, anteprojeto de lei que pretenderia revogar a legislação licitatória então vigente, substituindo-a integralmente.
O anteprojeto recebeu, segundo então se divulgou, mais de trezentas emendas. De certo que os responsáveis pelo texto passaram à sua análise. É de supor-se que a MP nº 2.026/00 resulte dessa contribuição coletiva.
Em maio de 1997, ao lançar a quarta edição dos “Comentários à Lei das Licitações e Contratações da Administração Pública” (ed. Renovar), ofereci, em nota introdutória, algumas observações ao anteprojeto, dentre as quais a de que o novo tratamento que se alvitrava para a matéria somente representaria avanço se alterasse o procedimento, invertendo-se, nas licitações do tipo menor preço, as fases de habilitação e de julgamento de propostas comerciais. Segue-se a transcrição daquelas observações, verbis:
“… O que parece crucial, feito um primeiro balanço entre virtudes e defeitos do anteprojeto, é a sua inapetência para simplificar o processo administrativo das licitações, sem perda da transparência e da segurança jurídica. Os poucos aperfeiçoamentos que propõe não reestruturam a lei atual, nem lhe afetam visceralmente a principiologia, o que não justifica a edição de lei nova.
“Para atender a tal propósito meramente emendativo, bastaria introduzirem-se alterações na Lei nº 8.666/93, o que melhor serviria, desde que não fossem veiculadas por Medida Provisória, à estabilização das relações jurídicas entre Administração e licitantes, que já contam com desenvolvida contribuição doutrinária e pretoriana na interpretação, inclusive corretiva, do regime normativo da Lei nº 8.666/93, vigente há menos de cinco anos.
“Lembro, com o fim de configurar a possibilidade de simplificar o procedimento licitatório, sem perda da essência da competitividade e da isonomia que devem marcar toda licitação, da experiência por que passaram, nos últimos dez anos, os concursos para o provimento de cargos públicos. Há quinze anos, quando me submeti a concurso público para o ingresso na magistratura de carreira do Estado do Rio de Janeiro, havia, tal como ainda hoje existe nas licitações, a fase preliminar de habilitação, em que cada candidato deveria apresentar à banca examinadora uma quantidade aterradora de certidões, declarações, atestados e títulos.
“Eram, em média, dois mil candidatos, ou mais, disputando cem vagas, ou menos, a cada concurso. Entre a data de encerramento das inscrições e a data de realização da primeira prova de conhecimentos, passava-se mais de ano porque a banca era obrigada a esquadrinhar, tal como fazem as Comissões de Licitações, os documentos de cada disputante e divulgar, ao final da estafante tarefa, executada sem prejuízo das funções judicantes de seus membros, tal como se impõe aos membros das Comissões de Licitação na maioria dos órgãos públicos quanto às suas demais funções administrativas, a relação dos candidatos cujos pedidos de inscrição houvessem sido deferidos porque estava em ordem a respectiva documentação.
“Feita a primeira prova de conhecimentos, de caráter eliminatório, tal como é eliminatória a fase de habilitação nas licitações, eram aprovados entre cem e duzentos candidatos; ao cabo de todas as provas, raramente restavam aprovados mais de dez a vinte candidatos, o que equivale a dizer que fora inútil grande parte do trabalho de verificação de documentos.
“Há mais de uma década, os Tribunais e outros órgãos que realizam concursos para o provimento de cargos públicos concluíram em favor do que se deve afinal descobrir aplicável também nas licitações: é imperioso que se simplifique a fase de habilitação, pois que nela concentra-se a maioria dos incidentes que retardam e tumultuam, sem utilidade para o interesse público, os torneios licitatórios.
“No caso dos concursos, a simplificação se fez pela redução drástica das exigências para participar da competição: em geral, o pagamento de taxa e a assinatura de uma declaração de que o candidato apresentará todos os documentos exigidos no edital, se aprovado nas provas de conhecimentos. Com essa simples, mas de enorme eficácia, providência, os concursos de ingresso na magistratura, que, no Estado do Rio de Janeiro, demoravam cerca de dois anos, duram, agora, dois a três meses, propiciando a realização de três e até quatro por ano, conforme o número de vagas a suprir.
“Transplantada que fosse para o campo das licitações, a medida, desde que autorizada em lei, equivaleria a admitir ao prélio todos os concorrentes que se declarassem em condições de atender às exigências documentais formuladas no edital. Isto é, inverter-se-ia a seqüência hoje imperante para a abertura dos envelopes. Em primeiro lugar, seriam abertos os envelopes de preço (não se esquecendo de que as licitações, em mais de 90% dos casos, são do tipo “menor preço”); o licitante que cotasse o menor preço deveria apresentar os documentos exigidos no edital quanto à sua habilitação jurídica¸ regularidade fiscal, qualificação técnica e qualificação econômico-financeira.
“Fazendo-o adequadamente, seria desde logo proclamado portador da proposta mais vantajosa, desnecessária, por ociosa, a abertura de qualquer outro envelope dos demais competidores, e concluído o trabalho da Comissão. Se desatendesse às estipulações editalícias, seria inabilitado e convocado o segundo colocado no preço para apresentar a mesma documentação; e assim sucessivamente.
“Imagine-se a economia de tempo, a simplificação de passos e o contorno de incidentes despropositados que volta e meia embaraçam a fase da habilitação, gerando recursos administrativos infundados, ou sérios em conseqüência de erros involuntariamente cometidos pela Comissão, diante da massa de documentos que lhe cumpre examinar de cada licitante, não raro premida por prazos que a Administração exige sejam exíguos, embora nem sempre compatibilizáveis com os prazos legais previstos para a interposição de impugnações e recursos.
“A vingar o anteprojeto tal como publicado, continuaremos a testemunhar a ocorrência de dificuldades para a correta observância das minudências da lei por agentes administrativos nem sempre preparados para o complexo mister de julgar segundo conjuntos normativos extensos e intrincados. Rara é a licitação, hoje, se processada segundo as modalidades mais amplas (concorrência e tomada de preços), que resulta ultimada em menos de três a quatro meses (desde a data em que se solicita a aquisição até a homologação).
“Simplificado que fosse o procedimento, o prazo de duração das licitações corriqueiras não passaria de três semanas, consoante tem sido verificado quando, dispensada a licitação formal porque tipifi
cada hipótese legal de seu afastamento, procede-se a coleta de preços informal para a escolha daquele que será contratado diretamente”.
Parece que a MP nº 2.026/00 absorveu a idéia. O objeto de sua criação normativa concentra-se na instituição de sexta modalidade de licitação, cujo procedimento inverte a seqüência das fases da habilitação dos licitantes e do julgamento de suas propostas, nos termos que aventei naquela edição de maio de 1997. É o que se passa a examinar, quanto a seus principais aspectos.