Pregão, a sexta modalidade de licitação

2. A questão constitucional de sempre: norma geral ou procedimental?

As modalidades de licitação traduzem o “como fazer”, o procedimento a ser cumprido pela Administração ao licitar. A cada modalidade corresponde um modo de licitar, de acordo com o valor e as características do objeto da compra, da obra, do serviço ou da alienação, repercutindo sobre prazos de publicidade, exigências de habilitação, elaboração do ato convocatório, fatores e critérios objetivos de julgamento.

É mais de trintenária, no direito positivo brasileiro, a adoção de cinco modalidades de licitação, para toda a Administração Pública brasileira: concorrência, tomada de preços, convite, concurso e leilão. Os arts. 1º e 2º da MP nº 2.026/00 estabelecem que a sexta modalidade de licitação, o pregão, será utilizada “exclusivamente no âmbito da União”. Vale dizer que a MP circunscreve o raio de cogência de suas normas aos órgãos subordinados da Administração federal direta (alcançando os órgãos administrativos dos três Poderes) e às entidades vinculadas à Administração federal indireta (autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista vinculadas aos Ministérios), além dos Fundos, entidades e empresas sujeitos ao controle da União. E ressalvada a disciplina especial que vier a assentar, quanto às empresas públicas e sociedades de economia mista, o estatuto prometido no art. 173, § 1º, da Constituição da República, com a redação da Emenda Constitucional nº 19/98.

Significa que a MP não pretendeu dispor para as Administrações dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Para estas, não estaria criado o pregão como sexta modalidade de licitação?

A resposta não é tranqüila e passa pela decana das questões decorrentes do regime jurídico das licitações e contratações de nossa Administração Pública, qual seja a de identificar, na legislação federal, quais as normas que portam caráter geral e as que são de índole procedimental. Entendendo-se por norma geral aquela que seja indispensável à implementação de princípios e venha estabelecer “standard” padronizado de comportamento jurídico-administrativo.

A matéria remonta ao Decreto-Lei nº 2.300/86, que já intentava submeter às suas normas todos os órgãos e entidades da Administração Pública brasileira, suscitando resistências alicerçadas na autonomia que Estados e Municípios têm na gestão de seus próprios recursos organizacionais, humanos e materiais.

A Constituição de 1988 não afastou as hesitações do tema quando, em seu art. 22, XXVII, conferiu à União competência privativa para legislar sobre “normas gerais de licitação e contratação”. É que, cabendo à União a privatividade legiferante apenas para a produção de normas gerais, subentende-se que há normas não-gerais (procedimentais, locais, regionais) cuja edição cabe na competência dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Certo que as normas gerais, a par de federais, são nacionais, isto é, obrigam também os órgãos e entidades das Administrações dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, a elas não se podendo contrapor as normas não-gerais locais.

Se a MP nº 2.026/00 cria modalidade de licitação exclusivamente para ser utilizada no “âmbito da União”, estaria a fazê-lo mediante norma geral ou norma não-geral? Se se concluir que o pregão é modalidade de licitação decorrente de norma geral, viabiliza-se o seu emprego também no âmbito das Administrações dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Se se entender que o pregão é modalidade de licitação decorrente de norma não-geral, então somente a Administração federal estaria autorizada a dele fazer uso.

A literalidade do texto sugere que a MP teria adotado a premissa de que suas normas são meramente procedimentais, seguindo-se que obrigatórias apenas para a Administração federal. Se assim se considerasse, porém, nenhum outro ente público integrante da Federação poderia utilizar-se do pregão. A menos que cada qual editasse lei que o instituísse no âmbito de sua própria Administração. Mas, então, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios esbarrariam na regra do art. 22, § 8º, da Lei nº 8.666/93, que veda “a criação de outras modalidades de licitação ou a combinação das referidas neste artigo” (concorrência, tomada de preços, convite, concurso e leilão).

O Tribunal de Contas da União tem proclamado, em inúmeras oportunidades, sobretudo ao examinar regulamentos internos que cuidam das licitações de entidades vinculadas à Administração indireta, que somente lei federal pode dispor sobre modalidades de licitação, reconhecendo o caráter geral das normas que as fixam, na Lei nº 8.666/93.

Em verdade, a atribuição de caráter geral às normas definidoras das modalidades de licitação – daí sua edição ser privativa de lei da União – encontra sólido esteio na Lei Maior. O art. 22, XXVII, claramente dirige a incidência das normas gerais a “todas as modalidades” de licitação, “para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios” (redação da Emenda Constitucional nº 19/98). Não soa possível, portanto, que os demais entes da Federação disponham, em suas próprias leis, sobre a criação de modalidades de licitação, posto que defesa em norma legal federal de caráter geral (o referido art. 22, § 8º, da Lei nº 8.666/93).

De duas uma: ou a MP nº 2.026/00 quer reservar o uso da nova modalidade de licitação para a Administração federal, ou disse menos do que alvitrariam seus propósitos.

Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios não podem conceber e praticar modalidades de licitação não previstas na legislação, porque disto proibidos por norma legal federal geral, com evidenciado amparo constitucional. Mas, uma vez criada a modalidade por norma federal, os demais entes da Federação não resultam impedidos de acolhê-la. A norma federal criadora do pregão delimita o “âmbito da União” como o campo de aplicação obrigatória da nova modalidade, contudo não a veda para os demais entes da Federação.

Aceito que seja o caráter geral das normas federais sobre modalidades de licitação, a MP nº 2.026/00, ao dirigir-se exclusivamente à União, apenas não pretendeu impor o pregão às Administrações estaduais, distrital e municipais. O pregão passa a ser modalidade de uso obrigatório na Administração federal. Nada obsta o seu uso também no âmbito das demais Administrações. Esta será a melhor leitura da Medida.

Há ilação a extrair-se. Se, de um lado, as modalidades de licitação somente podem ser objeto de norma legal federal geral, vero é, de outro, que haveria aspectos procedimentais que poderiam ser objeto de normas legais locais, desde que conciliáveis com as normas gerais. Assim, o inteiro teor da MP nº 2.026/00 é de observância compulsória, verbum ad verbum, no âmbito de todos os órgãos e entidades integrantes da Administração federal. A modalidade criada estende-se ao uso das Administrações dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, que poderão, mediante normas próprias, configurar pormenores procedimentais específicos ou suprir lacunas deixadas pela MP, desde que harmonizáveis com o tratamento que esta dispensou à matéria.

Não seria de descartar-se outra possível inferência. Ao escolher a via da Medida Provisória, o governo federal estaria a colocar em teste a nova modalidade antes de torná-la obrigatória para toda a Administração Pública brasileira, o que resultaria da conversão da Medida em Lei, oportunamente, após número indeterminado de reedições da MP, como já aconteceu em anteriores modificações introduzidas na própria Lei nº 8.666/93 através de Medidas Provisórias. Também sob tal prisma, não haveria impedimento a que cada Estado, o Distrito Federal ou cada Município entendesse de desde logo adotar o pregão como modalidade de suas respectivas licitações, nos termos em que a desenhou a norma federal, ainda que provisoriamente.

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