Recentes alterações no Sistema de Registro de Preços

TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE SÃO PAULO

SECRETARIA-DIRETORIA GERAL

 

As recentes edições de dois novos diplomas normativos versando sobre o Sistema de Registro de Preços, tanto na esfera estadual, como na federal, ensejam a retomada do debate sobre esta forma de contratação de serviços e aquisição de bens pela Administração Pública, sobretudo em relação à polêmica figura do “carona”.

A primeira novidade refere-se à edição do Decreto Estadual n° 58.494 (1), de 29 de outubro de 2012, diploma que, apesar de conter apenas dois artigos, promoveu expressivas alterações no regulamento do Sistema de Registro de Preços no âmbito da Administração do Estado de São Paulo. 

A segunda diz respeito ao Decreto Federal n° 7.892 (2), de 23 de janeiro de 2013, norma que, revogando o diploma legal que até então regia a matéria – o Decreto Federal n° 3.931, de 19 de setembro de 2001 – apresentou significativas modificações na sistemática do registro de preços na órbita da Administração Pública Federal.

Considerando a influência que estes novos regramentos podem vir a exercer sobre os entes que compõem a federação  e, mais particularmente, sobre os jurisdicionados deste Tribunal de Contas – que podem, eventualmente, se balizar em um ou outro modelo na regulamentação de seus respectivos Sistemas de Registro de Preços – penso ser pertinente e relevante traçar algumas considerações sobre os pontos em que referidos diplomas legais apresentam convergência – como no caso da estipulação do prazo de validade da ata de  registro de preços  –  e divergência –  quanto  à possibilidade de adesão a atas de registro de preços firmadas por órgãos ou entidades de outra espera de governo, procedimento denominado como “carona”.

Preliminarmente, todavia, esboçarei um breve histórico do tratamento dado à questão por esta Corte de Contas.

Em estudo que tramita nesta Casa, TCA-8.073/026/09 , restou reconhecido que, à época, a matéria não comportaria uma decisão definitiva e hermética quanto à legalidade da figura jurídica do “carona”, motivo pelo qual o Plenário, por decisão publicada no DOE de 02/12/2009, sob a relatoria do E. Conselheiro Renato Martins Costa, determinou o arquivamento do processado com a conclusão de que:

[…] apenas a riqueza das situações de fato e de direito que venham a ser apreciadas em cada caso concreto sujeito à nossa jurisdição, seja na esfera estadual, seja na órbita municipal, já que várias Prefeituras estão a lançar mão dos mesmos institutos aqui iluminados, apenas tais análises, repito, podem levar o Tribunal à formação de jurisprudência segura e refletida, orientadora das ações administrativas empreendidas.

Em outras palavras, a dinâmica dos casos concretos é que direcionaria a jurisprudência, a qual acabou se consolidando no sentido da ilegalidade e inconstitucionalidade da figura do “carona”,  conforme se observa em diversos julgados desta Casa .

Neste sentido também caminhavam as manifestações da douta Secretaria Diretoria-Geral, que já indicavam que tanto a adoção do “carona” quanto a prorrogação da vigência da ata de registro de preços por mais de 12 (doze) meses seriam procedimentos contrários aos princípios que regem o ordenamento pátrio, e à legislação que incide sobre a matéria, conforme transcrição dos seguintes trechos de interesse do mencionado TCA 8.073/026/09:

 

[…] diante de tantos argumentos contrários à sistemática conhecida como “carona”, deixo ao alvedrio de Vossa Excelência proposta do encaminhamento dessas conclusões ao Sr. Chefe do Executivo, acerca da conveniência de revogação do Decreto Estadual n° 51.809/07, informando-o que tal mecanismo não encontra fundamento legal para sua existência.

[…] o decreto regulamentador deverá observar, dentre outros requisitos, o prazo de validade da ata de até 01 (um) ano, ou seja, poderá, eventualmente, prever um prazo menor, mas jamais superior a 12 (doze) meses, sob pena de flagrante ilegalidade 

Feitas estas considerações iniciais, passo a discorrer sobre o tratamento dado pelos decretos federal e estadual às questões de maior debate, quais sejam aquelas relativas à prorrogação da ata de registro de preços e à adesão à ata de registro de preços   (“carona”). 

Inicio pela importante modificação levada a efeito por ambos os diplomas legais, consistente na adequação dos regulamentos ao limite imposto no art. 15, § 3°, inc. III, da Lei n° 8.666/93, sendo estipulado que a validade do registro de preços,   computadas todas as prorrogações,   não poderá ser superior a 1 (um) ano, prática que há muito vinha sendo cobrada por parte desta Corte de Contas .

Mas, indubitavelmente, a questão que envolve discussões mais acaloradas entre os aplicadores do direito é aquela relativa ao “carona”. 

Neste sentido, o novo texto normativo federal, dando continuidade ao anteriormente previsto no Decreto Federal n° 3.931/01, permite que órgãos e entidades municipais, distritais e estaduais adiram a atas de registro de preços da Administração Pública Federal, conferindo, em verdade, poderes para que os entes federados prevejam procedimento da espécie em seus regulamentos locais.

Assim dispõe o §  9°  do artigo  22  do Decreto  Federal n° 7.892/13 (2):

“§ 9° É facultada aos órgãos ou entidades municipais, distritais ou estaduais a adesão a ata de registro de preços da Administração Pública Federal”

Partindo-se desta premissa, entendo que o tema deva ser tratado em duas esferas: a estadual e a municipal, especialmente considerando que na primeira órbita já existe norma regulamentando a matéria, qual seja o Decreto Estadual n° 47.945/03,   recentemente alterado pelo Decreto n°  58.494/12. 

Sob o prisma estadual, verificamos que a figura do “carona” restou definitivamente revogada em outubro de 2012, por meio do Decreto Estadual n°  58.494/12,   que assim dispôs: 

Artigo 2° – Este decreto entra em vigor na data de sua publicação, ficando revogadas as disposições em contrário, em especial: 

I – os artigos 15A e 15B do Decreto n° 47.945 (3), de 16 de julho de 2003. 

Assim, restando pacificada a questão no âmbito estadual,  cabe enfrentá-la,  então,  sob o enfoque municipal. 

Isto porque, consoante se infere do novo regramento, à luz do disposto no § 3° do art. 15 da Lei n° 8.666/938, compete a cada Município, através de sua legislação local, prever, ou não, esse instituto em seu regulamento próprio de registro de preços.

Desta forma, importa dizer que aqueles Municípios que ainda não contam com legislação local tratando sobre a matéria, poderiam estabelecer o “carona”, ao passo que aqueles que já editaram normas próprias contendo esta específica previsão, poderiam persistir na adoção de tal sistemática.

Em que pese o regulamento federal dar ensejo a tal possibilidade, verifico que o procedimento não é acolhido por este Tribunal, que em inúmeras oportunidades endereçou severas críticas à aplicação deste instituto, porquanto sua adoção acarreta em diversas ilegalidades e inconstitucionalidades.

A este respeito, visando elucidar a matéria, embasei-me no cerne do raciocínio concebido pelo ilustre Substituto do Secretário-Diretor   Geral,   Dr.   Sérgio   de   Castro   Júnior,   que   bem  participado do certame licitatório, mediante prévia consulta ao Órgão Gerenciador, desde que comprovada a vantagem em tal adesão.

§ 1° – Caberá ao fornecedor beneficiário da Ata de Registro de Preços, observadas as condições nela estabelecidas, optar pela aceitação ou não do fornecimento, independentemente dos quantitativos registrados em Ata, desde que este fornecimento não prejudique as obrigações anteriormente assumidas. 

§ 2° – As aquisições ou contratações adicionais a que se refere este artigo não poderão exceder, por órgão ou entidade, a cem por cento dos quantitativos registrados na Ata de Registro de Preços.

§3° – Poderão igualmente utilizar-se da Ata de Registro de Preços, mediante prévia consulta ao Órgão Gerenciador, outros entes e entidades da Administração Pública, desde que observadas as condições estabelecidas nos §§ 1°  e 2° deste artigo.

Artigo 15B – Os órgãos e entidades da Administração estadual poderão utilizar-se de Atas de Registros de Preços realizadas pela União, Distrito Federal, outros Estados e Municípios, desde que demonstrada a vantagem econômica em tal adesão comparativamente aos preços registrados no Sistema Integrado de Informações Físico-Financeiras – SIAFISICO ou aos praticados no mercado”.

8   §   3°    O   sistema   de   registro   de   preços    será   regulamentado   por   decreto, atendidas as peculiaridades regionais,   observadas as seguintes condições: 

[…]

III – validade do registro não superior a um ano. deduz as mais significativas impropriedades inerentes a referido sistema.

 

A mais substancial consiste na inobservância ao princípio constitucional da legalidade inserto no caput do artigo 37 da Constituição Federal, porquanto a Lei de Licitações não contém previsão da utilização de tal expediente, não cabendo, portanto, ao decreto regulamentador inovar. Em outras palavras, significa desprezar a máxima de que o administrador público só está autorizado a fazer aquilo que está expressamente previsto em lei.

Mas também há a violação ao princípio da licitação obrigatória, disposto no inciso XXI do artigo 37 da Constituição Federal, e no artigo 2° da Lei de Licitações, os quais preconizam que a licitação é a regra, sendo que as exceções devem estar expressamente previstas em lei. Desta forma, aquele órgão que adere à ata de registro de preços de outra entidade na verdade deixa de realizar o devido procedimento licitatório.

Infringe-se o princípio da vinculação ao edital, uma vez que a contratação do órgão aderente não estava prevista no certame, bem assim o princípio da publicidade, uma vez que a divulgação fica restrita à esfera de Poder do ente que realizou o certame.

Da mesma forma, resta evidente a violação ao princípio da isonomia, porquanto o vencedor do certame será o fornecedor de um sem número de contratações, o que significa conferir tratamento desigual aos possíveis concorrentes capazes de disputar uma contratação com a Administração.

Diante destas observações contrárias à aplicação do instituto do “carona”, penso que, quanto àqueles Municípios que ainda não elaboraram regramento próprio sobre a matéria, cabe expresso aconselhamento no sentido de que se evite a introdução desta figura no texto normativo, sob pena de possível julgamento pela irregularidade da contratação, efetuada mediante a adoção de aludido procedimento, a exemplo da jurisprudência há pouco mencionada.

Orientação semelhante pode ser dirigida àqueles Municípios que já possuem esta previsão em sua legislação local, porquanto esta Corte, mesmo nestas situações, tem considerado irregulares  ajustes  que  sejam decorrentes  de  “carona”,   tendo  em conta a violação aos preceitos constitucionais e legais antes referidos.

Outrossim, interessa anotar que o decreto federal, ao mesmo tempo em que permite que órgãos e entidades municipais, distritais e estaduais adiram a atas de registro de preços da Administração Pública Federal, curiosamente veda expressamente que a “carona” se dê em sentido contrário (art. 22, § 8° ), o que reforça, ainda mais, a ideia de que este sistema está permeado de reflexões jurídicas que o enfraquecem.

Mas o novel regulamento federal não se limitou a reproduzir a redação então vigente sobre o tema, porquanto trouxe definições e regras mais pormenorizadas acerca do procedimento de adesão a atas de registro de preços, de que são exemplos: a conceituação e a competência do ^órgão não participante’ (art. 2°, V e art. 22, § 7°); a previsão de que, no caso de se admitir a figura do “carona”, o edital da licitação para registro de preços deverá contemplar a estimativa de quantidades a serem adquiridas por órgãos não participantes (art. 9°, III), bem como estipular que o quantitativo decorrente das adesões não poderá exceder, na totalidade, ao quíntuplo do quantitativo de cada item registrado para o órgão gerenciador e órgãos participantes (art. 22,  § 4°).

E, também, estipulou que o órgão gerenciador somente poderá autorizar a adesão após a primeira aquisição ou contratação por órgão integrante da ata (art. 22, § 5°); a imposição de que o órgão não participante deverá efetivar a aquisição ou contratação solicitada em até 90 dias da autorização pelo órgão gerenciador (art. 22, § 6°); a vedação a que órgãos e entidades da administração pública federal adiram a atas gerenciadas por órgãos ou entidades municipal, distrital ou estadual    (art.  22,  § 8°). 

Finalizadas as considerações sobre a figura do “carona”,   devo ressaltar questão de  suma importância no presente estudo: ambos os decretos contêm previsão acerca do instituto da “adesão prévia”.

Por meio desse procedimento os órgãos e entidades interessados tomam parte nos procedimentos iniciais do Sistema de Registro de Preços e integram tanto o edital da licitação, quanto a ata,  na condição de participantes. Tal mecanismo não é apenas admissível, como desejável, pois além de centralizar as aquisições de diversos órgãos e entidades em uma ou poucas licitações  – o que reduz sensivelmente os custos para todos os envolvidos – pode propiciar ainda ganho em decorrência da economia de escala, obtida quando se licita quantitativo mais significativo do bem ou do serviço pretendido.

Neste sentido, há que se ressaltar que o decreto federal instituiu, em seu art. 4°, procedimento denominado Intenção de Registro de Preços – IRP , por meio do qual um dado órgão divulga, com antecedência, os itens a serem licitados para que órgãos e entidades interessados possam participar dos procedimentos iniciais de registro de preços, vindo a se constituírem como   órgãos participantes’.  Vale destacar, no entanto, que a orientação predominante neste Tribunal é no sentido de que a participação deva se restringir a órgãos e entidades da mesma esfera de governo, o que se justifica ao se considerar que o Sistema de Registro de Preços é um procedimento administrativo disciplinado por legislação e normas internas da pessoa de direito público em que se processa , de acordo com seus interesses e conveniências e mediante  obediência  ao princípio  constitucional  da  autonomia  das entidades federadas , não podendo haver interferência de umas nas outras.

Ademais, a realização de licitação entre entes federados distintos poderia conduzir a uma situação em que os participantes se encontrariam sob a jurisdição de diferentes Tribunais de Contas, causando um conflito de competências de difícil,  senão impossível,  solução. Diante de todas essas considerações, e tendo em vista a jurisprudência que se firmou nesta Corte, entendo que cabe a este Tribunal orientar os órgãos e entidades jurisdicionados para que não se utilizem do expediente denominado “carona”, sob pena de julgamento pela irregularidade das contratações firmadas por meio do emprego de tal instituto. 

 

Claudine Corrêa Leite Bottesi
Assessora Técnico-Procuradora

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