4) A regulamentação prevista no art. 1°, § 2º, da MP
Previu-se a regulamentação para explicitar os casos de “objeto comum”. Essa regulamentação não se constitui em condição de eficácia plena da regra. Não é necessário aguardar a regulamentação para aplicar a nova modalidade. Essa regulamentação poderá explicitar, acima de dúvidas usuais, os casos de cabimento do pregão. Mas a redação é suficiente por si só para propiciar a aplicabilidade do sistema.
Parte II – Considerações gerais acerca do pregão
5) A manutenção da existência das modalidades da Lei nº 8.666
Continuam a existir as modalidades licitatórias previstas na Lei nº 8.666. Não foram suprimidas nem elas nem seus pressupostos de sua aplicação. Quando muito poderá reconhecer-se uma faculdade de utilização da nova modalidade para hipóteses que, no sistema anterior, seriam objeto de licitação na modalidade de convite, tomada de preços ou concorrência.
6) Pregão como modalidade licitatória
Configurar o pregão como uma modalidade licitatória significa adotar um novo procedimento para seleção da proposta mais vantajosa, com observância do princípio da isonomia. Uma modalidade de licitação consiste em um procedimento ordenado segundo certos princípios e finalidades. O que diferencia uma modalidade de outra é a estruturação procedimental, a forma de elaboração de propostas e o universo de possíveis participantes.
O art. 2º da MP 2.026 identifica o pregão através de uma dentre suas muitas peculiaridades. Ali se refere que a característica do leilão é fazer-se a seleção do vencedor através de “propostas e lances em sessão pública”. Sobre o tema, voltar-se-á adiante, mas é relevante destacar que este é um dos pontos peculiares do pregão, mas não é o único. Além da conjugação de propostas e lances em sessão pública, outros ângulos merecem destaque.
Em primeiro lugar, a estrutura procedimental do pregão é absolutamente peculiar, com duas características fundamentais. Uma consiste na inversão das fases de habilitação e julgamento. Outra é a possibilidade de renovação de lances por todos ou alguns dos licitantes, até chegar-se à proposta mais vantajosa. Em segundo lugar, o pregão comporta propostas por escrito, mas o desenvolvimento do certame envolve a formulação de novas proposições (“lances”), sob forma verbal (ou, mesmo, por via eletrônica). Em terceiro lugar, podem participar quaisquer pessoas, inclusive aqueles não inscritos em cadastro. Sob um certo ângulo, o pregão é uma modalidade muito similar ao leilão, apenas que não se destina à alienação de bens públicos e à obtenção da maior oferta possível. O pregão visa à aquisição de bens ou contratação de serviços, pelo menor preço.
7) Facultatividade da adoção da modalidade no caso concreto
O pregão poderá ser utilizado nas hipóteses em que seria cabível concorrência, tomada de preços ou convite. A opção pelo pregão é facultativa, o que evidencia que não há um campo específico, próprio e inconfundível para o pregão. Não se trata de uma modalidade cuja existência se exclua a possibilidade de adotar-se convite, tomada ou concorrência, mas se destina a substituir a escolha de tais modalidades, nos casos em que assim seja reputado adequado e conveniente pela Administração.
O cabimento do pregão não se relaciona com o valor da contratação porque se configura outro modelo. Cabe o pregão para contratações que versam sobre objetos destituídos de maior complexidade. Ou seja, o critério de cabimento do pregão é qualitativo e não quantitativo. Admite-se que podem existir objetos complexos de pequeno valor e contratos de grande valor que envolvam objetos comuns. O pregão é adequado para contratação de objeto comum, padronizado, simples, disponível no mercado. Portanto, não há cabimento de questionar o valor da contratação. Daí a irrelevância do critério de valor para fixação do cabimento do pregão.
8) Âmbito restrito de utilização do pregão
Por outro lado, não é possível substituir as modalidades comuns (concorrência, tomada de preços e convite) pelo pregão em toda e qualquer hipótese. Somente pode optar-se pelo pregão quando o objeto do contrato for bem ou serviço “comum”. Destaque-se ser irrelevante o valor do contrato para fins de escolha do pregão.
9) Bem ou serviço “comum”
O pregão é modalidade adequada para obtenção de fornecimento de bem ou serviço comum. Essa terminologia não constava da Lei nº 8.666, mas retrata uma tendência sempre observada nas propostas de reforma da legislativa.
9.1) A origem da distinção
Tem-se reputado conveniente distinguir entre bens “padronizados” e bens “sob encomenda”, para assegurar tratamento jurídico diverso. O ponto nuclear relaciona-se com a idéia de que a licitação para contratação de objeto “padronizado” não necessita sujeitar-se a trâmites tão minuciosos como os necessários para fornecimentos de objetos singulares e específicos. Ou seja, há casos em que a Administração necessita de bens que estão disponíveis no mercado, configurados em termos mais ou menos invariáveis. São hipóteses em que é público o domínio das técnicas para produção do objeto e fornecimento à Administração, de tal modo que não existe dificuldade em localizar um universo de fornecedores em condições de satisfazer plenamente o interesse público. Em outros casos, o objeto deverá ser produzido sob encomenda ou adequado às configurações de um caso concreto.
9.2) O conceito de “bem ou serviço comum”
A expressão “bem ou serviço comum” apresenta uma indeterminação apenas relativa. Comporta alguma certeza por parte do aplicador, o qual deve ter em vista a razão de ser e as finalidades da norma. Esse é um caminho muito mais razoável do que o derivado da tentativa de interpretar literalmente a fórmula legal.
O fato é que a solução legislativa não foi a mais feliz. Deve interpretar-se com certa cautela a fórmula constante do § 1º do art. 1° da MP, quando se refere a objetos “cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser objetivamente definidos pelo edital”. Ora, todo e qualquer objeto licitado tem de ser descrito objetivamente, por ocasião da elaboração do ato convocatório da licitação. Mesmo quando se licitar um bem ou serviço “incomum”, especial, singular, haverá a necessidade (e a possibilidade) de fixação de critérios objetivos de avaliação. Ou seja, o que identifica um bem ou serviço singular não é a existência de critérios objetivos de avaliação. Quando muito, poderia afirmar-se que um bem ou serviço comum pode ser descrito mais fácil e completamente através de critérios objetivos do que os que não o sejam.
O que caracteriza um objeto como comum é a padronização de sua configuração, que é viabilizada pela ausência de necessidade especial a ser atendida e pela experiência e tradição do mercado. Alguns exemplos permitem compreender a distinção. Como regra, todos os veículos automotores necessitam de combustível. Considerando-se os motores que utilizam como combustível os derivados de petróleo, torna-se evidente uma necessidade que poderia ser dita “comum”. A aquisição de gasolina para abastecimento de veículos não envolve maiores peculiaridades. Em princípio, não há necessidade de investigar as peculiaridades do objeto fornecido (gasolina), bastando que sejam atendidas as especificações mínimas necessárias. Veja-se que isso deriva de que os veículos da Administração Pública funcionam com combustível comum, tal como disponível no mercado. Já um veículo destinado a competições esportivas pode exigir uma gasolina especial, envolvendo complexas avaliações – todas elas objetivas, mas que escapam ao padrão de usualidade.
Há uma tentação de afirmar que a expressão “bem ou serviço comum” é antônima de “objeto singular”, constante do art. 25, inc. II, da Lei nº 8.666. De fato e sob um certo ângulo, não é “comum” aquilo que se configura como “singular”. A singularidade é o oposto do comum. Mas a comparação é excessiva, porque inúmeros objetos nem são comuns nem são singulares – ao menos, nem se subordinam ao regime do pregão nem comportam aquisição por inexigibilidade. Em última análise, bem ou serviço “comum”, para fins da adoção de pregão, é aquele que pode ser adquirido no mercado sem maior dificuldade, nem demanda maior investigação acerca do fornecedor.
Ou seja, a interpretação do conceito de “bem ou serviço comum” deve fazer-se em função das exigências do interesse público e das peculiaridades procedimentais do próprio pregão. A natureza do pregão deve ser considerada para determinar o próprio conceito de “bem ou serviço comum”.
O pregão é um procedimento de seleção aberto à participação de qualquer interessado, em que não se impõem requisitos mais aprofundados acerca da habilitação do fornecedor nem exigências acerca de um objeto sofisticado. Bem ou serviço comum é aquele que pode ser adquirido, de modo satisfatório, através de um procedimento de seleção destituído de sofisticação ou minúcia. Em última análise, “comum” não é o bem destituído de sofisticação, mas aqueles para cuja aquisição satisfatória não se fazem necessárias investigações ou cláusulas mais profundas.
Enfim, são comuns os objetos padronizados, aqueles que têm um perfil qualitativo definido no mercado. Mas não apenas os objetos padronizados podem ser reputados como comuns.
Bem por isso, a regra é que obras e serviços de engenharia não se enquadrem no âmbito de “bens e serviços comuns”. Como toda edificação imobiliária envolve avaliação de circunstâncias específicas, variáveis segundo as peculiaridades de local e necessidade, torna-se muito problemático cogitar de objeto padronizados. Mas até pode, por exceção e especialmente no tocante a serviços de engenharia, encontrar hipóteses em que se reconheceria um objeto comum. Suponha-se, por exemplo, a implantação de habitações populares, envolvendo projetos padronizados e construções destituídas de maior complexidade. Não seria viável negar a possibilidade de licitação mediante pregão apenas em virtude do silêncio legislativo acerca de “obras”.
9.3) A fórmula do art. 8° do Regulamento da Anatel
A redação legislativa copiou textualmente parte do art. 8° do Regulamento de Contratações da Anatel, ao formular a definição de “bem ou serviço comum”. Lembre-se que o texto do Regulamento enuncia, exemplificativamente, algumas hipóteses, que servem inclusive como parâmetro hermenêutico. Os casos previstos no Regulamento da Anatel são “peças de reposição de equipamentos, mobiliário padronizado, bens de consumo, combustíveis e material de escritório, bem assim serviços de limpeza, vigilância, conservação, locação e manutenção de equipamentos, agenciamento de viagem, vale refeição, digitação, transporte, seguro saúde”.
O elenco pode ser utilizado para nortear a atividade dos demais segmentos da Administração, sem que seja o caso de invocar alguma força normativa de ato interno da Anatel. Trata-se, tão somente, de identificação de objetos contratuais que podem ser reconduzidos ao conceito legal de bem ou serviço comum – desde que a hipótese não demande alguma circunstância especial. Assim, por exemplo, suponha-se serviço de vigilância para instalações que manuseiam produtos altamente perigosos (minerais nucleares e seus derivados). É evidente que se poderia até atingir ao caso de contratação direta por inexigibilidade de licitação (se não fosse o caso de dispensa fundada no art. 24, inc. IX, da Lei n° 8.666). Nunca seria o caso de recorrer ao pregão. Ou seja, não é possível padronizar conceitos ao ponto de escolher o pregão sem verificar a necessidade pública que concretamente deva ser atendida.
9.4) Possibilidade (necessidade) de especificações de qualidade mínima
A fórmula legal não impede a adoção de requisitos de qualidade mínima. Um bem ou serviço não deixa de ser “comum” quando a Administração estabelece padrões mínimos de aceitabilidade. Mesmo no mercado, existem diversos padrões de qualidade de produtos, todas elas reconduzíveis ao conceito de “comum”. A adoção da modalidade de pregão não significa que a Administração seja constrangida a adquirir produtos de qualidade inadequada, apenas porque buscará o menor preço.
No caso do pregão, o ato convocatório deverá indicar os requisitos de qualidade mínima admissível, para o fim específico de estabelecer critérios de aceitabilidade de propostas. Desse modo, a Administração não ficará constrangida a aceitar propostas cujo pequeno valor corresponde à qualidade insuficiente.
9.5) Pregão e registro de preços
O Regulamento da Anatel alude ao cabimento do pregão para selecionar propostas e proponentes no sistema de registro de preços (art. 11, inc. III). Essa solução não pode ser generalizada, eis que a Lei n° 8.666 determina, de modo explícito, que o registro de preços deverá envolver concorrência. Portanto e a ainda que o objeto do registro sejam bens e serviços comuns, não se admitirá seleção através de pregão.