RHS Licitações

Impactos do Plano Real nos Contratos Públicos

Efetivamente, no entender dos e. magistrados, o fato do príncipe emana, omissiva ou comissivamente, da própria administração contratante, ao passo que, medidas legislativas de caráter geral, como o Plano Real, se ajustariam ao campo reservado à teoria da imprevisão.

Dita compreensão do assunto, do ponto de vista técnico-jurídico, constitui erro palmar. A teoria da imprevisão, sob inspiração da conhecida cláusula rebus sic stantibus, tem no fato do príncipe uma das causas mais constantes de sua manifestação, assentada que está em premissas do caráter extraordinário, não previsível, inevitável e excessivamente oneroso de dada situação ensejada por ação, de caráter geral e abstrato, protagonizada pelo Estado (Príncipe).

Afeiçoam-se, ontologicamente, ditos institutos, quanto aos elementos imprevisibilidade de acontecimento geral e alheios à conduta dos contratantes, e que origina onerosidade excessiva para o particular contratado, distanciando-se apenas tocante ao elemento subjetivo e a natureza do fato ou acontecimento.

A teoria da imprevisão, categoria maior no âmbito dos contratos, consiste em acontecimentos gerais, de naturezas diversas, desencadeados por fatos não previstos e imprevisíveis, de conseqüências inafastáveis no plano da relação contratual a configurar onerosidade excessiva. Já o fato do príncipe, uma das suas manifestações, é caracterizada por ato de agente investido em função pública revestido de caráter geral e abstrato (feição normativa), que igualmente tem repercussão na realidade do contrato, quebrando o seu equilíbrio econômico-financeiro.

O que se há de divisar, com precisão absoluta, e para o que não tem atentado os e. julgadores, é que, seja fato do príncipe, seja teoria da imprevisão, não se pode estabelecer qualquer similitude entre eles e o chamado fato da administração.

Deveras, o fato da administração consiste, este sim, em medida ou conduta omissiva ou comissiva, diretamente provocada pelo órgão ou entidade pública contratante, que reflete na realidade ou economia interior da avença, rendendo ensejo à sua revisão, rescisão ou ressarcimento por perdas e danos.

Entretanto, ocorre que, no caso do Plano Real, mostra-se induvidosa a conjugação, dos três mencionados inst
itutos.

É que, medida legal, de caráter geral, qual seja o Plano Real, alheia à realidade do contrato mas com ela interagindo, conjuga todos os elementos estruturais das teorias da imprevisão e do fato do príncipe, irmanadas que são, a saber, acontecimento imprevisto e imprevisível no momento do lançamento do Edital de licitação e celebração da avença, que repercutiu no equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, provocando onerosidade excessiva para o particular contratado.

De outra parte, a superveniência desse acontecimento rendeu o aviamento de pleitos administrativos objetivando o restabelecimento da equação econômico-financeira violada, que não lograram êxito, consistindo a recusa ou negativa da Administração contratante genuíno fato da administração, porquanto, como cediço, à luz do art. 37, XXI, da CF/88, e da Lei n.º 8.666/93, em especial o seu art. 65, II, alínea “d”, era imperativo, e não faculdade, fazê-lo.

De fato, reza a melhor doutrina, cujos ensinamentos, no particular, alinham-se às prescrições legais sobre o tema, que o “fato do príncipe” é tipificado como ato geral do Poder Público, que se insere em álea extraordinária e excepcional no âmbito do contrato, mas que, ainda assim, culminam por resvalar na economia contratual, alterando-lhe a equação originariamente conformada.

Não é e jamais foi requisito para a configuração do fato do príncipe a circunstância de haver sido editado pela mesma Administração Pública contratante, condição esta inerente à configuração do fato da administração.

As conseqüências do fato do príncipe, portanto, conforme voz assente de doutrina e jurisprudência, ao contrário do que assevera os e. Magistrados, não são patrocinadas pela mesma Administração contratante, conquanto possa incidir, direta e especificamente sobre o negócio firmado entre Ela e o administrado.

Para aclarar a questão aqui proposta neste artigo, merecem transcrição as preleções do preclaro Hely Lopes Meireles, de leitura indispensável a tantos quantos desejem conhecimento técnico-científico sobre o tema:

“Fato do príncipe é toda determinação estatal, positiva ou negativa, geral, imprevista e imprevisível, que onera substancialmente a execução do contrato administrativo. Essa oneração, constituindo uma álea administrativa extraordinária e extracontratual, desde que intolerável e impeditiva da execução do ajuste, obriga o Poder Público contratante a compensar integralmente os prejuízos pela outra parte, a fim de possibilitar o prosseguimento da execução, e, se esta for impossível, rende ensejo à rescisão do contrato, com as indenizações cabíveis.

O fundamento da teoria do fato do príncipe é o mesmo que justifica a indenização do expropriado por utilidade pública ou interesse social, isto é, a Administração não pode causar danos ou prejuízos aos administrados, e muito menos a seus contratados, ainda que em benefício da coletividade. Quando isso ocorre, surge a obrigação de indenizar.

O fato do príncipe, caracterizado por um ato geral do Poder Público, tal como a proibição de importar determinado produto, só reflexamente desequilibra a economia do contrato ou impede sua plena execução. Por isso não se confunde com o fato da administração…” (in “Direito Administrativo Brasileiro”, São Paulo, Malheiros, 1993, p. 222/223). (os grifos sublinhados não são do original).

Odete Medauar, administrativista das mais respeitadas, também preconiza a generalidade das determinações da Administração enquadradas como “fato do príncipe”, ao comentar sobre o art. 65, II, “d” da Lei n.º 8.666/93, disposição legal que o admite como motivo ensejador da revisão contratual:

“… Menciona, ainda, fato do príncipe, que é a decisão da Administração, de caráter geral, alheia ao contrato em si, mas que tem reflexos fortes na sua execução; não à Administração contratante de alterar unilateralmente o contrato, pois este se refere ao contrato em si, é específico, previsível e, no direito brasileiro, legalmente circunscrito.” (in “Direito Administrativo Moderno”, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1996, p. 251). (grifamos).

Carlos Ari Sundfeld, d. Procurador deste Estado de São Paulo, que dispensa apresentações, ao esquadrinhar a Lei de Licitações, junta-se aos demais juristas, asseverando:

“A lei foi expressa ao assegurar a revisão do preço caso o equilíbrio contratual seja rompido pelo chamado “fato do príncipe”. Deveras, dispôs que “quaisquer tributos ou encargos legais criados, alterados ou extintos, bem como a superveniência de disposições legais, quando ocorridas após a data da apresentação da proposta, de comprovada repercussão nos preços contratados, implicarão a revisão destes para mais ou para menos, conforme o caso” (art. 65-§ 5º), sem contar a referência no art. 65-II-d.

………………………………………..

Essa revisão do preço não está ligada a eventos contratuais, mas à incidência, na economia do contrato, de fatores a ele estranhos. O estatuto mencionou os tributos, cuja criação, supressão, aumento ou diminuição repercuta nos preços contratados. Mas não se limitou a eles. Quaisquer disposições normativas cujo surgimento repercuta comprovadamente nos preços, bem como quaisquer outros encargos criados, alterados ou extintos após a sua fixação, dão ensejo à revisão da remuneração.” (Carlos Ari Sundfeld, in “Licitação e Contrato Administrativo”, São Paulo, Malheiros, 1995, p. 243) (grifos nossos).

Após os valorosos doutrinários aqui trascritos, dúvidas não haveriam de remanescer quanto ao caráter geral e alheio ao contrato e aos contratantes, público e particular, dos atos estatais a que se convencionou nominar de fatos do príncipe, a cujo conceito ajusta-se como luva   —   e não há qualquer controvérsia a esse respeito   —   ao evento econômico do Plano Real.

Mas o desalinho de perspectiva das sentenças mencionadas, no particular é de só menos importância, já que, seja talhando o Plano Real como “fato do príncipe”, seja como “teoria da imprevisão”   —   e configura ambas as figuras jurídicas   –,   sem esquecer-se, ademais, que o seu advento provocou indeferimentos de pleitos administrativos, vocacionados para o restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro, aí sim conformando, a Contratante, autêntico fato da administração, a conseqüência irrecusável é uma só: o restabelecimento da equação econômico-financeira do contrato.

Com efeito, analisando a questão que se põe nesse estudo, sob o prisma da teoria da imprevisão, fato do príncipe e mesmo da administração, incontestável é o reconhecimento dos reflexos do Plano Real na economia do contrato, em detrimento do particular contratado, provocados por medidas de estabilização econômica, implantadas no País em meados de 1994 com o objetivo de banir a escalada inflacionária, como de fato baniu.

Equívoco, sem receio de dúvida, qualquer posicionamento firmado em sentido contrário, que, neste contexto, também culmina por afrontar o comando do art. 65, II, “d” e seu § 5º, da Lei 8.666/93.

Aliás, importante relembrar,  na exposição de motivos encaminhada pelo então Ministro da Fazenda e Planejamento ao Presidente da República, juntamente com a MP 524/94, Fernando Henrique Cardoso, consta asserção expressa e específica aos reflexos do Plano Econômico nas relações contratuais, inobstante  ressaltada a sua eficácia no combate à inflação. Vale repetir:

“A reforma monetária não apenas derruba a inflação instantaneamente; ela também institui um novo padrão monetário para o País e, portanto, nec
essita, redefinir na nova moeda todas as relações contratuais preexistentes, preservando seu equilíbrio econômico-financeiro” – grifamos.

De efeito, é certo que a estabilização econômica efetivada com a implementação de um novo padrão monetário trouxe, para o País, incalculáveis benefícios, pondo fim à corrosão inflacionária que já asfixiava a nossa economia, e a ninguém é dado negar a grande valia do Plano Real no controle à inflação. E aqui não se está realmente, é bom que se frise, a discutir este relevante aspecto, também comemorado pelas empresas contratadas pela Administração Pública.

Mas também é notório, que, de há muito, vinha o País convivendo com o fenômeno inflacionário avassalador, responsável por substancial e contínua corrosão do poder aquisitivo da moeda, cujo valor intrínseco cada vez mais se distanciava em períodos, cada vez menores, do seu valor extrínseco, tornando a situação catastrófica, drástica, excepcional, trazida pela “malfadada” inflação, no normal, ordinário, corriqueiro, banal e a sua erradicação ou minimização, de revés, no extraordinário, inusitado, imprevisível.

Nesse contexto, em que ordinária e habitual a convivência com a espiral inflacionária, é de todo ilógico imaginar-se que as pessoas, ao celebrarem os contratos, não tomavam como base a realidade econômica circundante. Só se acometidas de insanidade plena poderiam desconsiderar aspectos econômicos e financeiros compatíveis com a realidade de mercado daquela época.

Apenas a título elucidativo, colacionamos lições doutrinárias que ratificam o quanto aqui ponderado.

“A estagnação com inflação – na qual temos vivido nos últimos anos, com a convivência de uma estagnação econômica e de uma inflação progressiva tem demonstrado que a crise monetária está no coração dos acontecimentos.

…………………………………………….

A crise brasileira e a crise mundial não datam de hoje, mas a sua intensidade tem aumentado progressivamente, nos últimos tempos, a tal ponto que acabamos vivendo, normalmente, dentro de um quadro crítico, nas últimas décadas.” (Arnoldo Wald, in “O Novo Direito Monetário: Os planos Econômicos e a Justiça”, Belo Horizonte, Nova Alvorada Edições, 1996, p. 14/15) – grifamos.

Convivendo com “situação de guerra” por tão longo período   —   mais de 30 (trinta) anos   —   com uma desvalorização monetária assustadora, natural o surgimento de mecanismos contratuais de salvaguarda do poder de compra da moeda, amoldando-se os contratos à instabilidade provocada pela indesejada inflação, já a este tanto tão fortemente arraigada à nossa cultura que considerada fator comum, presente na formação e na execução de todas as relações em sociedade.

Assim, todo um instrumental jurídico era concebido para a preservação dos preços contratuais, com a eleição de moedas de conta, como OTN e ORTN dentre outras muitas em nossa história, bem assim, e sobretudo, a introdução da expectativa inflacionária do período subseqüente ao valor das prestações, sem se desdenhar os legítimos, lícitos e corriqueiros, na sistemática então vigente, ganhos inflacionário e financeiro auferidos com a movimentação de recursos na ciranda financeira, inclusive praticada pelo próprio Poder Público.

Tanto assim o é que era a praxe comercial à época da crescente inflação, conhecida e vivificada pela própria Administração, a adoção de preços irrisórios, chegando mesmo a R$ 0,01 (Hum centavo)  —   o que, a princípio, poderia conformar a inexequibilidade contratual   —   em avenças travadas com o Poder Público, quando era característica do negócio a retenção, à guisa de compensação, do montante angariado por certo lapso de tempo para ulterior repasse, como comumente ocorria nas relações travadas pelas empresas do seguimento de alimentação, de estacionamentos e outras.

Neste contexto, lucrava a Administração com o aviltamento do preço e lucrava o particular contratado com a elasticidade do prazo de pagamento, permitindo-lhe auferir ganho com a utilização dos valores no mercado financeiro.

É certo que era do conhecimento da contratante esta remuneração secundária.

Não o fosse e não seriam por ela recepcionadas tais propostas de preço, pena de incorrer em afronta ao art. 48 da Lei de Licitações, que impõe a desclassificação de propostas inexeqüíveis. A postura da Administração, nesse particular, é um verdadeiro reconhecimento de que a movimentação financeira compunha a receita do contratado.

E tal equação é de ser transportada para o contexto dos contratos sob estudo, notadamente dada a similitude entre as relações acima alinhadas (transcurso de tempo entre a arrecadação de recursos e o seu repasse).

De efeito, tendo proposto em momento no qual forte e ascendente a inflação, os proponentes contratados anterior ao Plano Real,  consideraram a corrosão inflacionária, a par do ganho financeiro, à vista do prazo de pagamento sem correlata indexação.

Evidente que também a Contratante assim procedeu, convicta que se encontrava   —   já que não se pode presumir ignorassem os seus administradores a realidade econômica então convivida   —   dos reflexos diretos e inarredáveis do fenômeno inflacionário sobre a sua remuneração quando recebida, em prazo dilatado e sem qualquer espécie de atualização ou correção monetária.

O Plano Real expungiu ou abrandou sobremodo a inflação e, consequentemente, as então lícitas e legítimas vantagens econômicas e financeiras dela decorrentes para a contratada, como expectadas na proposta, com o giro do dinheiro no mercado financeiro, enfim dos valores em seu poder e ainda não repassados, postura essa, repita-se, comum, lícita e legítima num regime de indexação vertiginosa.

E quanto a estes fatos de natureza econômica, de relevantíssimas conseqüências no plano jurídico, não há controvérsia.

Embora exaustivamente deduzido neste artigo, não é demais ressaltar que, no âmbito do Plano Real, a partir da MP n.º 785/94, em seu art. 23, §§ 1º a 3º, prescrição ulteriormente transformada em Lei, quando em pauta os contratos públicos, foi imposta a dedução da expectativa inflacionária presumidamente (na norma) considerada no período de pagamento, fixando-se, como parâmetro para o expurgo, indistintamente, o IGP-DI do mês de junho de 1994, apurado pela FGV.

De fato, em sendo assim, desconsiderado o expurgo no caso em apreço, com a supressão do ganho inflacionário expectado ab initio, ter-se-iam dois pesos e duas medidas: o Estado, quando agente pagador, procede ao referido expurgo, não o fazendo quando credor.

A postura de negar o expurgo atenta, portanto, contra os próprios preceitos que traçam os contornos do Plano Real, mais precisamente o art.15, §§ 5º e 6º da Lei 8.880/94.

Registre-se que o Plano Econômico inaugurado, caracterizador do que vem a se designar de “fato do príncipe”, imprevisto e imprevisível, é de salientar, radical e abruptamente procedeu a uma alteração substancial nas condições econômicas então existentes, repercutindo impiedosamente na relação contratual travada, trazendo, efetivamente, aos Contratados oneração excessiva, inesperada e insuportável, bem como ganho contraposto não esperado à Administração Pública, impondo brutal rompimento da equação econômico-financeira inicialmente conformada.

De fato, tivessem os Contratados por premonição, vislumbrado a queda da inflação, certamente não teriam computado os ganhos inflacionário e financeiro com a postergação do repasse como forma de remuneração, e o plus então auferido estaria embutido no seu preço.

Suprimindo este, se
m o conseqüente expurgo, induvidoso que tal benefício é revertido em favor da Administração Pública, representado ganho não contemplado no contrato: recebimento dos valores em moeda forte e sem deságio, o que não era a tônica na época que antecedeu a implantação do Real.

Desta feita, se não se nega que a equação econômico-financeira do contrato há de ser mantida na sua exata medida, importando não apenas na majoração, como também na diminuição do preço originariamente avençado, para que não angarie o particular contratado nem mais nem menos do que o ajustado, não há dúvidas, outrossim, de que inadmissível à Administração contratante dar em contraprestação menos do que o preço que se predispôs a dispender quando da celebração do pacto, sob pena de locupletamento pelo Poder Público.

Jurisconsultos de escol são assentes em firmar o repúdio ao enriquecimento sem causa pela Administração contratante, nas hipóteses de alteração do estado de fato conformado quando da celebração do contrato, máxime nas circunstâncias em que este enriquecimento está atrelado ao implemento de um novo panorama econômico de estabilização da moeda.

Seguem transcritos alguns excertos no particular.

“Entre nós, acórdão de mão e sobremão do Tribunal de Apelação do Distrito Federal ressaltou este ponto e fez admirável síntese dos fundamentos da teoria e de seu alcance, tendo em ponto um contato de construção. Observou que na atualidade:

“O risco que os contraentes assumem no contrato não pode ser concebido como excedendo o risco normal, isto é, o que se compreende nos limites da previsão humana. Levar mais longe o dogma da intangibilidade do contrato seria, sob o pretexto de garantir a liberdade contratual, destruir o fundamento do contato, a sua base econômica e moral, como instrumento de comércio e de cooperação entre os homens, o elemento de boa-fé e de justiça sem o qual a liberdade dos contratos seria apenas uma aparência destinada a legitimar o locupletamento injusto de uma parte à custa do patrimônio da outra, sobre esta recaindo de modo exclusivo os riscos estranhos à natureza do contrato e que, se previsíveis na ocasião de atar-se o vínculo contratual, teriam impedido a sua formação. Os pressupostos que determinaram as partes a se obrigarem deixaram de existir e, se imprevisíveis as circunstâncias que de modo tão grave frustraram a justificada expectativa dos contraentes, seria, evidentemente, injusto manter a economia do contrato contra a intenção e a fé em que ele foi ajustado e concluído. Nas épocas, porém, como a nossa, os grandes cataclismos políticos que surpreendem pela sua amplitude e a sua gravidade ainda aos homens colocados nas torres de comando, e forçam os governos de todos os países às mais drásticas medidas de emergência, seria sumariamente injustificável que no domínio do comércio jurídico e da liberdade contratual, que se fundam precisamente no pressuposto da continuidade da ordem estabelecida, se deixasse ao egoísmo individual o poder, dissimulado em direito, de aproveitar-se das circunstâncias imprevistas e anormais para transformar um instrumento de equilíbrio econômico, como é o contrato, em instrumento de extorsão ou de enriquecimento injusto. Daí o haver da teoria da imprevisão nos contratos passados somente de poucos anos a esta parte a ser considerada como da mais alta importância prática.” (Arquivo Judiciário 68/344 e ss.)” (Celso Antônio Bandeira de Melo, in “Curso de Direito Administrativo”, São Paulo, Malheiros, 1996, p. 399).

“Nos vários casos, a sofisticação do direito não constitui uma simples elucubração intelectual, destituída de finalidades práticas, mas, ao contrário, um instrumento adequado para aprimorar a justiça, fazendo com que a lei não seja um obstáculo na batalha contra a inflação. Por outro lado, mesmo em nome da estabilidade monetária, não é possível ensejar o empobrecimento de uns e o enriquecimento de outros, sem qualquer causa. O equilíbrio entre os interesses conflitantes deve ser encontrado pelo legislador e, na sua falta, pelo magistrado, que encontrará apoio nos princípios gerais do direito e na própria doutrina.” (Arnoldo Wald, in op.cit., p. 325).

Todas essas asserções levadas a efeito, a nosso ver, induzem à conclusão de que a equivalência que, originariamente, foi estabelecida, ao estipular-se o Ato Convocatório e aceitar-se a proposta ofertada na licitação anterior ao Plano Real, retratada no instrumento contratual, contemplou uma realidade distinta, em tudo e por tudo, da qual hoje se vivência.

Essa, segundo a melhor doutrina, a equação econômico-financeira que, presente nos contratos (bilaterais e sinalagmáticos), se deve manter intocável, intangível, imutável ao longo da sua execução.

Daí o desacerto de opinião contrária, no nosso melhor entendimento, ao desconsiderar a repercussão do Plano Real na sede das avenças e, bem por isso, negar a restauração da economia contratual na forma como pactuada, arredando a incidência da teoria da imprevisão na hipótese em causa e violentando o art. 37, XXI, da Carta Magna, e o princípio do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos que exprime, bem assim os arts. 58, § 2º e art. 65, II, “d”, da Lei n.º 8.666/93, este último alterado pela Lei n.º 8.883/94.

Não é despiciendo assinalar que, a inflação era, antes do Real, fenômeno tão comum e natural que o Judiciário, à mingua de fatos novos e imprevisíveis, que interferissem na economia dos contratos, naquela época repelia pretensões de revisão de contrato calcadas na própria inflação (no particular, consulte: TJMT RT 654/157; TAC in RJ RT 669/175; RT 664/96, dentre outras).

A mudança desse quadro, por fato imprevisto e imprevisível, qual seja o Plano Real, é que renderia, como rende, ensejo à aplicação da teoria da imprevisão, visto como de ocorrência incontestável, na verdade fato público e notório, o fato do príncipe interferente.

De efeito, o que se deve ter em conta é o que foi expectado pelos contratantes no momento da contratação e a modificação do status quo ante por fatos alheios à vontade das partes: ali a extirpação da inflação repercutindo na realidade íntima dos contratos.

Qualquer posicionamento em contrário demonstra desconhecimento quanto ao processo de formação dos preços contratuais, onde devem ser considerados os custos diretos e indiretos e o benefício ou lucro almejado pelo empresário.

Demais disso, não se pode negar, num regime capitalista, ao particular a obtenção do lucro legitimamente expectado por ocasião do oferecimento de sua proposta e da celebração do contrato, sob pena de maltrato ao art. 170 da CF/88.

B I B L I O G R A F I A

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ZAVASCKI, Tori Albino – RP, n° 64, p. 185
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SAMPAIO, Marcos Vinícius de Abreu – O Poder Geral de Cautela do Juiz, RT, p. 141
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