Por: Wanderley Fernandes
Tendo sido convidado a participar do Seminário Internacional de Compras Governamentais, por indicação do Sr. Silvério Crestana, do SEBRAE-SP, promovido pela RHS, tive a oportunidade apresentar ao Plenário as seguintes considerações sobre a Inclusão das Micro e Pequenas Empresas nas compras governamentais:
1. A apresentação foi elaborada a partir do trabalho desenvolvido por mim, em parceria com Patrícia Marrone, da empresa Consultrend, para o SEBRAE-SP, tendo como objeto o levantamento do estágio atual das legislações americana e da comunidade econômica européia a propósito do tema. Evidentemente, o objetivo não era copiar modelos ou práticas já estabelecidas, mas identificar práticas bem sucedidas que pudessem servir de referência para o desenvolvimento de uma regulamentação própria nacional.
2. Além disso, tomando tais informações, nosso segundo objetivo era definir os próximos passos a tomar em relação à regulamentação atual sobre o acesso das micro e pequenas empresas às compras governamentais no país.
3. Conforme mencionado pelos demais integrantes do painel de debates, Sr. Wesley José Gardelha Beier, Gerente de Terceirização e Contratos do Ministério do Planejamento, e Bruno Quick, Gerente da Unidade de Políticas Públicas do SEBRAE Nacional, a Constituição Federal, em dois dispositivos constantes do Capítulo da Ordem Econômica estipula tratamento diferenciado e prioritário para as pequenas e micro empresas.
4. O artigo 170 determina que:
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
IX. tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas segundo as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no país.
5. Além disso, o artigo 179 do texto constitucional estipula que:
Art. 179. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação destas por meio de lei.
6. Não há, portanto, que se duvidar que o poder constituinte erigiu como princípio o tratamento preferencial ou diferenciado das micro e pequenas empresas. Ao mesmo tempo, é igualmente constitucional a determinação de que a ordem econômica está fundada na função social da propriedade, na redução das desigualdades regionais e sociais e busca do pleno emprego.
7. Ora, o cumprimento de tais objetivos e garantia de aplicação desses princípios é dever do Estado que, nos termos do artigo 174 da Constituição:
Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e inidicativo para o setor privado.
8. Portanto, ainda que indicativo para o setor privado, o setor público está sujeito às determinações de incentivo e planejamento do Estado que, nos termos da Constituição Federal, está obrigado a cumprir o seu papel na ordem econômica e financeira. Ou seja, é determinante para o setor público o mandamento constitucional de tratamento preferencial e diferenciado para as micro e pequenas empresas.
9. As expressões tratamento preferencial e diferenciado não têm conteúdo jurídico pré-estabelecido, não são expressões jurídicas cujo sentido possa ser imediatamente apreendido pelo leitor. Devem, assim, ser definidas pelo legislador, como, de resto, determina a própria constituição. Note-se que ambos os artigos 170 e 179 fazem referência à lei ordinária. Em outras palavras, cumpridos os princípios da ordem econômica, o legislador deverá atribuir ao texto constitucional o sentido das expressões preferencial e diferenciado.
10. Pois bem, definidos tais princípios e objetivos, o legislador ordinário tratou de definir tal tratamento preferencial ou diferenciado, seja estabelecendo a simplificação dos procedimentos tributários, seja reduzindo a carga tributária sobre as pequenas e micro empresas. O artigo 1º do Estatuto da Micro e Pequena Empresa (Lei 9.841/99) busca exatamente a conexão entre a legislação e o mandamento constitucional de preferência e prioridade ao declarar que:
Art. 1º. Nos termos dos artigos 170 e 179 da Constituição, é assegurado às microempresas e às empresas de pequeno porte tratamento jurídico diferenciado e simplificado nos campos administrativo, tributário, previdenciário, trabalhista, creditício e de desenvolvimento empresarial, em conformidade com o que dispõe esta lei e a lei 9.317, de 5 de dezembro de 1966 e alterações posteriores.
Parágrafo único. O tratamento jurídico simplificado e favorecido, estabelecido nesta lei, visa facilitar a constituição e o funcionamento da microempresa e da empresa de pequeno porte, de modo a assegurar o fortalecimento de sua participação no processo de desenvolvimento econômico e social.
11. O legislador ordinário, portanto, reconheceu a necessidade de inserção das micro e pequenas empresas no processo de desenvolvimento econômico e social e estabeleceu, entre um dos elementos de definição do tratamento preferencial e diferenciado, o desenvolvimento empresarial. Ora, o desenvolvimento empresarial somente pode ser compreendido no fortalecimento da participação no processo de desenvolvimento econômico e social e, conseqüentemente, no fortalecimento das micro e pequenas empresas no mercado. Em outras palavras, no maior acesso das micro e pequenas empresas no mercado relevante em que se inserem.
12. Não pode ser outro o entendimento, pois o Estatuto das Micro e Pequenas Empresas estabelece, no seu artigo 24, inserido no capítulo designado exatamente Desenvolvimento Empresarial:
Art. 24. A política de compras governamentais dará prioridade à microempresa e á empresa de pequeno porte, individualmente ou de forma associada, com processo especial e simplificado nos termos da regulamentação desta Lei.
13. Parece-nos absolutamente coerentes as disposições acima, pois partem da idéia de prioridade e preferência às micro e pequena empresas.
14. Porém, não andou bem o poder regulamentar. O Estatuto foi regulamentado pelo Decreto 3.474/00 que, seguindo o disposto na lei, criou um capítulo específico denominado Do Desenvolvimento Empresarial. O desenvolvimento empresarial, no entanto, desconsiderou completamente a determinação da prioridade às micro e pequenas empresas na compras governamentais.
15. Examinando o decreto, verifica-se que muitos direitos e obrigações foram regulados, mas nada foi estipulado quanto ao disposto no artigo 24 transcrito acima. Parece, mesmo, que o legislador ignorou o mandamento legal de priorização das micro e pequenas empresas, pois foram regulamentados diversos dispositivos do capítulo da lei que trata do desenvolvimento empresarial, sem que tenha sido regulamentado o disposto no referido artigo 24. Note-se que, ao definir a prioridade para as micro e pequenas empresas na política de compras governamentais, esse artigo é absolutamente consistente com o texto constitucional que menciona o caráter determinante dos princípios da ordem pública para o setor público. Ou seja, o tratamento preferencial ou diferenciado pode ser obedecido pelo particular, mas é DETERMINANTE para o setor público.
16. Em síntese, HÁ UMA LACUNA QUANTO À REGULAMENTAÇÃO DO ARTIGO 24 DO ESTATUTO DAS MICRO E PEQUENAS EMPRESAS. PORTANTO, PODE O PODER EXECUTIVO DEFINIR O CONTEÚDO, DENTR
O DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCINAIS DA ORDEM PÚBLICA, DO QUE CONSISTE O TRATAMENTO PREFERENCIAL E DIFERENCIADO DAS MICRO E PEQUENAS EMPRESAS.
17. Não obstante a lacuna regulamentar, buscou-se definir o conteúdo da preferência e prioridade das micro empresas nas compras governamentais mediante emenda constitucional, como demonstra a tramitação da PEC 187.
18. Entretanto, consta do relatório da Comissão de Constituição e Justiça que:
3. Há que considerar, outrossim, que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir (art. 60, par. 4º, da Const. Fed.) a forma federativa de estado, (i), o voto direto, secreto, universal, e periódico (ii) a separação dos poderes (iii) e os direitos e garantias individuais (iv).
4. A proposta de Emenda à constituição, sob crivo, não afronta as vedações impostas, salvo no que se refere ao inciso IV, pois que vulnera o princípio da isonomia consagrado não só no caput do art. 5º, que compõe o capítulo I (Dos Direitos e Deveres individuais e coletivos), do Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), como também, por decorrência, o seu inciso I, além de estar previsto já desde o preâmbulo, projetando-se em vários pontos do Texto Supremo.
19. É curioso que o relatório faça menção ao princípio da igualdade do artigo 5º. O parecer trata da igualdade fundamental entre os seres humanos, mas não cuida da igualdade na licitação. De que igualdade estamos falando? Opor o princípio da igualdade diante da desigualdade havida entre empresas monopolistas e pequenas e micro empresas é retornar ao passado e propor uma igualdade formal diante da desigualdade material. Desigualdade que tem sido combatida em nossos tribunais e afastada pelo direito moderno. Exemplo disso, o código do consumidor e o novo Código Civil que contém inúmeras disposições que buscam preservar a equivalência material das relações e não, apenas, a velha e superada igualdade formal do liberalismo clássico do século 19;
20. Parece-me, de outro lado, que é desnecessário investigar a evolução histórica ou doutrinária do princípio da igualdade e da isonomia. A própria constituição nos dá a resposta. A constituição não pode ser interpretada em tiras, como ensina o Professor, hoje ministro do Supremo, Eros Roberto Grau. Assim, o princípio da igualdade previsto no artigo 5º não pode ser examinado isoladamente do artigo 37. Assim, quando a constituição menciona o princípio da igualdade dos concorrentes, estamos diante do tratamento específico da igualdade de agentes econômicos perseguindo uma relação jurídica com a administração pública. Repugna, portanto, ao Poder Constituinte o tratamento desigual e favorecido de um concorrente em detrimento de outro. Trata-se de preservação do princípio da isonomia e da probidade administrativa, evitando-se o favorecimento fundado em relações escusas entre o órgão licitante e os concorrentes.
21. Repita-se, deve ser mantido o tratamento isonômico entre os concorrentes. Regra que não exclui o tratamento diferenciado entre desiguais para a determinação do universo de concorrentes. Tome-se, por exemplo, a modalidade de licitação CONVITE. Pode o administrador escolher, dentro de um certo universo do mercado e nos termos da lei, os participantes do processo licitatório. Uma vez definidos os concorrentes, a eles deverá ser dispensado tratamento isonômico, sem qualquer favorecimento indevido a qualquer dos proponentes.
22. É preciso, no entanto, que o tratamento diferenciado esteja calcado em algum elemento objetivo de diferenciação. De um discrimen, que uma vez identificado permita a identificação do universo de concorrentes. A partir daí, a discriminação entre os concorrentes será indevida.
23. Dessa maneira, o próprio mandamento constitucional de tratamento preferencial e diferenciado às micro e pequenas empresas, decorrência de uma política de desenvolvimento e geração de empregos, parece-me ser elemento de discrimen suficiente a suportar o tratamento também diferenciado na política de compras governamentais, tal como estabelecido no artigo 24 do Estatuto.
24. Elemento de discrimen que pode igualmente ser encontrado no valor das compras que têm no pequeno valor um elemento de conexão com as micro e pequenas empresas.
25. Finalmente, observo que o tratamento diferenciado e preferencial às micro e pequenas empresas não é incompatível com os princípios da economicidade e busca da proposta mais vantajosa para a administração, pois existem mecanismos de sua preservação, como demonstram legislações estrangeiras que atribuem preferência, e até mesmo reserva de cotas á contratação de micro e pequenas empresas. Porém, não é esse o tema deste artigo que busca, apenas, evidenciar que:
(a) É perfeitamente constitucional o disposto no artigo 24 do Estatuto e EXISTE UMA LACUNA na sua regulamentação, o que pode ser suprido mediante decreto de iniciativa do Poder Executivo, sendo desnecessária nova legislação ou emenda constitucional;
(b) O tratamento diferenciado e preferencial não é inconstitucional e não viola o princípio constitucional da isonomia.
Wanderley Fernandes é advogado e sócio do escritório Barros Pimentel, Alcântara Gil, Fernandes, Rodriguez e Vargas – Advogados.