Desde agosto de 2011, um novo sistema de contratações públicas, o chamado Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), passou definitivamente a integrar o ordenamento jurídico brasileiro, através da conversão da Medida Provisória 527 na Lei Federal 12.462/11.
Se no início o RDC foi pensado para ser um regime de exceção, criado com o único propósito de viabilizar a conclusão das obras relativas à Copa do Mundo de 2014 e às Olimpíadas de 2016, as recentes ações governamentais indicam justamente o contrário.
Segundo a redação original da Lei Federal 12.462/11, regulamentada pelo Decreto Federal 7.581/11, seria permitida a aplicação do RDC exclusivamente para licitações e contratos necessários para os Jogos Olímpicos de 2016, da Copa das Confederações de 2013 e da Copa do Mundo de 2014, aí incluídas as obras de infraestrutura e contratação de serviços para os aeroportos das capitais distantes até 350 km das cidades-sede.
A generalidade das expressões contidas no texto legal instaurou grande polêmica — ainda não solucionada — acerca das obras de infraestrutura e serviços que poderiam ou não ser caracterizados como essenciais à viabilização das competições esportivas, como é o caso das obras de saneamento básico, por exemplo.
A proximidade da Copa 2014, aliada à constatação de que parte considerável das obras planejadas está longe de ser concluída, também trouxe questionamentos acerca da possibilidade de aplicação do RDC para projetos que aproveitarão às competições, mas não estarão totalmente acabados até os eventos.
A Lei Federal 12.462/11 regulamentou a questão de forma singela, estabelecendo que os contratos celebrados pelo RDC para a execução das obras previstas no plano plurianual poderiam ser firmados pelo período nele compreendido (artigo 42).
O tema, no entanto, foi recentemente enfrentado pelo Tribunal de Contas da União, ao analisar as obras do Aeroporto Pinto Martins (Fortaleza-CE), contratadas pelo RDC, incluídas no plano plurianual e com término previsto para 2017. Em sua decisão, o Ministro Relator Valmir Campelo determinou à Infraero que, “nos casos de obras com término posterior à Copa do Mundo de 2014 ou às Olimpíadas de 2016, somente utilize o Regime Diferenciado de Licitações Públicas, conforme o caso nas situações em que ao menos fração do empreendimento tenha efetivo proveito para a realização desses megaeventos esportivos, cumulativamente com a necessidade de se demonstrar a inviabilidade técnica e econômica do parcelamento das frações da empreitada a serem concluídas a posteriori” (Processo 038.038/2011, D.O.U. 6/6/12).
A decisão levantou novamente discussão eterna no campo das contratações públicas, consubstanciada na dificuldade de se demonstrar, de forma inequívoca, a inviabilidade técnica e econômica do parcelamento de um projeto de infraestrutura.
Atento às discussões que se criaram acerca do âmbito de aplicação do RDC e da possibilidade de utilização deste regime para contratação de obras com término após as competições, o Congresso Nacional aprovou alteração legislativa que parece solucionar parcialmente o problema, na medida em que passa a autorizar a utilização do RDC para as ações integrantes do Programa de Aceleração do Crescimento.
A Lei Federal 12.688, que alterou a Lei Federal 12.462, foi publicada em 19 de julho p.p., mesma data em que foi lançado pelo Governo Federal o PAC Mobilidade Médias Cidades, que disponibiliza R$ 7 bilhões para projetos de infraestrutura em cidades com população entre 250 mil e 700 mil habitantes.
A nova regra possibilita que parte das obras previstas para a Copa 2014, mas que não ficarão prontas a tempo, sejam incluídas no PAC e contratadas com segurança e conforto jurídico pelo RDC, atraindo, como consequência, a confiança e dinheiro de investidores privados.
Mas o PAC também não parece ser o limite para o RDC, que tem sido reiteradamente apontado pelo Governo Federal como solução mais célere e eficaz para viabilização das contratações públicas, que permitiria a obtenção de preços mais vantajosos e serviria, ainda, para combater a crise econômica e a desaceleração dos investimentos públicos.
Registre-se que está em vias de ser aprovada pelo Senado a Medida Provisória 570, que autoriza a utilização do RDC também no setor da educação e construção de creches.
A alteração da Lei Federal 12.462, com ampliação do âmbito de aplicação do RDC, assim como as declarações públicas governamentais, reforçam um suposto cenário da obsolescência da Lei Geral de Licitações e Contratações Públicas (8.666/93), que, se de um lado contempla prazos mais dilatados e mecanismos mais rigorosos de defesa contra fraudes, de outro, por vezes não permite a contratação da proposta mais vantajosa e dentro de um prazo razoável.
Ainda que o RDC mereça retoques e exija maior rigor na fiscalização da licitação e execução contratual pelos órgãos de controle, não se pode negar que o regime contém inovações importantes e compila ideias tiradas de outros textos legais — há muito já aplicados em âmbito nacional — que, de fato, aperfeiçoam as contratações de obras e serviços públicos.
Com efeito, o RDC traz importante inovação ao prever a possibilidade de “contratação integrada”, em que a elaboração dos projetos básico e executivo, assim como a execução das obras e serviços de engenharia, a montagem, a realização e testes, a pré-operação e todas as demais operações necessárias e suficientes para a entrega final do objeto ficam a cargo de uma única empresa. Para tanto, deve a Administração Pública disponibilizar no instrumento convocatório anteprojeto de engenharia, que contemple os documentos técnicos destinados a possibilitar a caracterização da obra ou serviço.
A contratação nesses moldes traz inúmeros ganhos operacionais, na medida em que todas as etapas do serviço feitas pela mesma licitante impede que a demora de uma empresa na execução de parte deles interfira no trabalho das demais, assim como evita a sobreposição de diversos contratos administrativos.
O novo regime de contratações prevê, ainda, a possibilidade de se adotar o modo de disputa aberto nas licitações, em que é permitida a apresentação de lances públicos e sucessivos pelas empresas, cabendo à licitante vencedora reelaborar e apresentar à Administração Pública as planilhas com a indicação de quantitativos e custos unitários. Determina também que licitação seja feita, preferencialmente, sob a forma eletrônica, o que amplia a competitividade no certame, além de ser muito mais prático e econômico.
De outro lado, o RDC prevê como regra que o orçamento estimado para o contrato será tornado público apenas e imediatamente após o encerramento da licitação, com o intuito de trazer maior competitividade ao certame e a obtenção de melhores preços pela Administração.
O RDC traz também importante inovação ao permitir a remuneração variável do particular, de acordo com o seu desempenho, assim como já acontece em parte dos contratos de Parceria Público-Privada (PPP).
Além disso, o RDC encurta o prazo dos certames ao estabelecer, como regra, a inversão de fases — há muito já prevista em diversos textos legais, como é o caso da lei paulista de licitações e da lei federal de pregão —, efetivando-se, primeiro, a apresentação de propostas ou lances e, após, a abertura dos documentos de habilitação do licitante vencedor.
No entanto, muito embora a contratação integrada e a inversão de fases façam do RDC alternativa mais célere, não se pode deixar de notar que a utilização de tais procedimentos em obras tão vultosas deve ser encarada com cautela.
A uma porque induz a Administração Pública a relevar eventuais falhas nos documentos de habilitação do licitante vencedor, podendo levar à adjudicação do objeto a empresas sem condições de executá-lo adequadamente.
E, a duas, porque a contratação integrada mostra-se extremamente gravosa ao particular, na medida em que a ele transfere integralmente os riscos relativos a obras de alta complexidade, contratadas em fase muito preliminar, antes mesmo da elaboração do projeto básico, quando ainda não se tem a exata noção das quantidades e dos problemas que serão enfrentados na execução do empreendimento. A situação mostra-se ainda mais delicada quando se observa que o RDC impõe, salvo em situações especiais, que o custo global das obras e serviços de engenharia seja obtido a partir de custos unitários de insumos ou serviços menores ou iguais à mediana de seus correspondentes ao Sistema Nacional de Pesquisa de Custos e Índices da Construção Civil (Sinapi), no caso de construção civil em geral, ou na tabela do Sistema de Custos de Obras Rodoviárias (Sicro), no caso de obras e serviços rodoviários, o que sujeita o particular ao enorme risco de arcar com o prejuízo decorrente da desatualização de tais tabelas frente à realidade do mercado.
Em resumo, a aplicação do RDC, muito embora tenha sido festejada pelo governo federal, deve ser enfrentada com cuidado, a fim de se evitar a sujeição do particular a contratações demasiadamente injustas, fundadas em orçamentos desatualizados e anteprojetos de engenharia deficientes.
Ainda, as peculiaridades envolvidas nas contratações feitas pelo RDC demandam fiscalização ainda mais criteriosa e aprofundada pelos órgãos de controle, notadamente do anteprojeto de engenharia e do orçamento elaborados pela Administração, assim como da exequibilidade do valor finalmente contratado e do preenchimento das condições de habilitação pela licitante vencedora. Também exige minuciosa analise dos projetos básico e executivo elaborados pelo particular na contratação integrada, a fim de se analisar a sua qualidade e adequação.
Por fim, não se pode deixa de notar que o RDC contém importantes inovações que, desde que bem aplicadas e a depender da experiência verificada, prometem causar futuras e substanciais modificações na Lei Geral de Licitações, cujo conteúdo tem sido paulatinamente esvaziado através de regimes específicos de contratação e, com mais força, pela recente alteração legislativa, que ampliou ainda mais a incidência do RDC, para permitir sua utilização nas bilionárias obras do PAC.
Por: Gabriela Braz Aidar
(Fonte: Conjur)