O Vaticano divulgou nesta segunda-feira (1o) uma lei para introduzir licitações para suas despesas internas, uma medida sem precedentes destinada a prevenir a corrupção e economizar dinheiro em meio à crise financeira ligada à pandemia de coronavírus.
Composto por 100 artigos, o texto é fruto de quatro anos de trabalho.
O papa Francisco foi eleito em 2013 para colocar as finanças do Vaticano em ordem, uma árdua reforma que encontrou resistência em certos “dicastérios” (ministérios) que administravam fundos de maneira muito autônoma e não muito transparente.
Uma estrutura de contratos e licitações com normas internacionais de transparência, visando a uma melhor administração dos recursos, é uma “minirrevolução” nos corredores do Vaticano.
A iniciativa do papa sobre “normas de transparência, controle e concorrência nos procedimentos para a concessão de contratos públicos à Santa Sé e ao Estado da Cidade do Vaticano” centralizará e planejará melhor as despesas atualmente muito fragmentadas, confiando-os a duas autoridades administrativas.
Em sua introdução, o papa enfatiza que a nova lei “reduzirá significativamente o perigo de corrupção”.
Esta legislação “retoma a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, assinada (em 2003) em Mérida e substitui os regulamentos anteriores já em vigor na APSA (Administração do Patrimônio da Sé Apostólica) e no Governo da Cidade do Vaticano, estendendo-se também a todos os órgãos da Santa Sé que, até agora, não possuíam legislação própria sobre contratos e mercados”, explica o site do Vaticano.
A luta contra a corrupção no mundo é um dos principais temas do pontificado de Francisco, que recentemente se mostrou chocado por uma investigação interna de uma possível corrupção ligada a investimentos imobiliários opacos pela Santa Sé em Londres.
O presidente do Tribunal do Vaticano, Giuseppe Pignatone, um grande especialista italiano na luta contra a máfia nomeado em outubro pelo papa, destaca, em uma contribuição escrita, que a lei também visa a obter “economias significativas” por meio de licitações.
“O tema da redução de gastos é muito atual e importante neste momento – que infelizmente deve durar – de sérias dificuldades econômicas para todo mundo, mas também para a Santa Sé e o Estado da Cidade do Vaticano”, ressalta o magistrado.
“Certamente estamos nos aproximando de anos difíceis”, previu em maio Juan Antonio Guerrero Alves, que desde janeiro chefia a Secretaria para a Economia da Santa Sé.
Os Museus do Vaticano – que atraem quase 7 milhões de turistas a cada ano – reabriram nesta segunda-feira para um público principalmente local. Seu fechamento desde 8 de março acentuou o buraco financeiro da Santa Sé, que agora aperta os cintos, especialmente para suas compras.
Além disso, a grande arrecadação anual no final de junho de doações feitas ao papa foi adiada para 4 de outubro, devido à pandemia de coronavírus.
A aplicação da nova lei será controlada pela Justiça do Vaticano, que recentemente ganhou maior autonomia.
– Clientelismo –
Para o professor de direito internacional Vincenzo Buonomo, consultor do Estado do Vaticano, as novas normas permitirão eliminar “a praga do desperdício”.
A Santa Sé (administração da Igreja) e o Estado do Vaticano (que gerencia museus, por exemplo) são regularmente criticados pela falta de formação administrativa e econômica de certos clérigos no comando.
A nova lei prevê a exclusão de licitações de pessoas que foram condenadas por pertencerem a organizações criminosas, ou que cometeram crimes fiscais.
A escolha dos fornecedores também deve responder a princípios éticos consistentes com os costumes da Igreja.
Outras regras visam a evitar conflitos de interesses familiares com os colaboradores da Santa Sé que participam das decisões.
“O ponto de virada é importante”, observou o vaticanista Iacopo Scaramuzzi, referindo-se ao “costume inveterado dentro do Vaticano” de confiar contratos externos a parentes, ou a amigos dos amigos.
Um processo no Vaticano em 2017 analisou o financiamento das obras de renovação do apartamento de 400 m2 do cardeal Tarcisio Bertone, poderoso número dois do Vaticano sob o papa Bento XVI. À época, o promotor do tribunal denunciou “o silêncio, opacidade e má administração dos assuntos públicos”.
Dois ex-gerentes da Fundação Hospital Pediátrico Bambino Gesu (de propriedade do Vaticano) foram acusados de “desviar” 422.000 euros para financiar a reforma. Um deles recebeu uma sentença de prisão de um ano com sursis.