Vendi e entreguei para um mesmo órgão em dois processos diferentes e ambos estão com o pagamento em atraso. Temos então a seguinte situação: Processo A (fornecimento único): mercadoria entregue e estão, na data de hoje, com atraso de 180 dias no pagamento. Processo B (fornecimento parcelado): mercadoria entregue e estão, na data de hoje, com atraso de 40 dias no pagamento. Hoje enviaram outra ordem de fornecimento para o Processo B, que está com atraso menor. O edital do Processo B prevê apenas reajuste financeiro por atraso no pagamento. Eu posso me negar a entregar a mercadoria? Devo fazer alguma comunicação formal para isso?
Primeiramente é importante observar o prazo de atraso do pagamento: a data para início da contagem será a data em que a nota fiscal/fatura era efetivamente exigível (data do vencimento), ou seja, a partir do dia em que o valor passou a ser devido (não necessariamente esta data coincide com a data do faturamento).
Caso tenha decorrido o interregno mínimo de 90 dias contados da data da exigibilidade da fatura sem pagamento, a contratada poderá requerer que seja formulada a rescisão do contrato, podendo, ainda, optar pela sua suspensão até que sejam regularizados os pagamentos (art. 78, XV, da Lei 8.666/93).
Entendo que a partir do momento que exista um motivo para rescisão, a contratada poderia (em tese), de forma unilateral, comunicar o fato e considerar rescindido o contrato, vez que é um direito que lhe cabe, conforme dispõe o caput do art. 78. Tal conduta tem justificativa no fato de que não se pode esperar que a Administração, de livre e espontânea vontade, rescinda o contrato quando ocorrer a hipótese do artigo 78, XV, mesmo porque, rescindir um contrato sem culpa do contratado parece ser desvantajoso para a Administração.
Mas não é tão simples dar por rescindido o contrato por falta de pagamento. Tendo em vista que o artigo 79 não prevê a rescisão unilateral por parte do contratado, há fundada dúvida se o contratado prejudicado com o atraso no pagamento teria mesmo direito (unilateral) de promover a rescisão. Há casos em que Administração, diante da rescisão unilateral do contratado, aplica punição por abandono do contrato.
A empresa contratada não é obrigada a financiar a Administração Pública, principalmente porque na proposta vencedora da licitação observava-se uma equação econômico-financeira bem como condições de execução contratual que deveriam ser respeitadas pelas partes.
As partes têm ciência das conseqüências resultantes do descumprimento; se a contratada descumpre o contrato, merece as penalidades da lei; se a contratante não obedece as disposições contratuais, sabe que a contratada, por menor que seja o seu direito, pode pleitear a interrupção definitiva da avença. Portanto, ocorrendo uma das hipóteses do artigo 78, seria justo que a parte prejudicada pudesse promover a rescisão do contrato.
Mesmo tendo esse entendimento, há correntes que consideram a rescisão (com base no art. 78, XV) possível apenas com autorização judicial. Dessa forma, sugiro que a contratada (por zelo) faça a comunicação da intenção de suspensão do fornecimento bem como, peça para que a Administração promova a rescisão por ser seu direito. Caso a mesma não tome providências, a contratada deverá (por segurança) pleitear a rescisão na esfera judicial.
Jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (AC 199904010345810):
“ADMINISTRATIVO. CONTRATO PARA FORNECIMENTO DE COBERTORES. EXCEÇÃO DO CONTRATO NÃO CUMPRIDO.
– Se o descumprimento integral da segunda parte do contrato pelo particular decorreu exclusivamente do atraso no recebimento do preço acordado com a União, acarretando prejuízo insuportável ao contratado, está justificada a invocação da “exceção do contrato não cumprido”.
– Inobstante os contratos administrativos estarem submetidos a regime jurídico próprio em que tem lugar a supremacia do Poder Público, esta não pode ultrapassar os condicionamentos do Estado Democrático de Direito.
– A União, ao deixar de cumprir a cláusula atinente às condições de pagamento, parcelando o preço, procedeu a verdadeira alteração do contrato, violando o princípio do equilíbrio econômico-financeiro; por isso, não encontram respaldo legal a rescisão do contrato pela União assim como a cominação das penas de multa e advertência.
– Mantida a sentença que rescindiu o contrato com fundamento no art. 78, XV, da Lei nº 8.666/93, condenando a ré ao pagamento devido nos termos do art. 79, §2º”.
Outra situação:
Havendo dois contratos administrativos em vigência, sendo que apenas em um deles há atraso de pagamento superior a 90 dias, autorizaria o contratado a suspender a execução do outro contrato que se encontra com seus pagamentos rigorosamente adimplidos?
No meu entendimento, não. São dois contratos e devem ser analisados de forma independente, autônoma. O atraso em um não autoriza a aplicação do art. 78, XV, no outro; ou seja, mesmo havendo atraso em um dos ajustes, o contratado não pode suspender a execução daquele contrato que se encontra com os pagamentos em dia.
Da mesma forma, não teria cabimento a Administração executar a garantia de um contrato, em razão da inadimplência de outro; ou ainda, reter o pagamento correspondente à fatura de um contrato, pela falha de execução de outro contrato, sob pena de causar o colapso na execução daquela avença que caminhava bem.
(Colaborou Prof. Ariosto Mila Peixoto, advogado especializado em licitações públicas, Contratos Administrativos no Setor Privado e Consultor Jurídico da RHS LICITAÇÕES).