RHS Licitações

A Alca, as compras governamentais e a defesa do interesse público nacional

Por: Tarso Cabral Violin
 

“Caso se implantem a ALCA e uma zona de livre comércio com a União Européia, o MERCOSUL terá desaparecido de forma definitiva como instrumento de política comercial preferencial e como embrião de união econômica.”
Samuel Pinheiro Guimarães

“O nosso objetivo com a ALCA é garantir para as empresas norte-americanas, o controle de um território que vai do Polo Ártico até a Antártida e livre acesso, sem nenhum obstáculo ou dificuldade, de nossos produtos, serviços e tecnologia e capital entre todo o Hemisfério!”
General Colin Powell

1- INTRODUÇÃO

O presente trabalho tratará basicamente sobre a Área de Livre Comércio das Américas, o que está sendo negociado no quesito “compras governamentais” e o que esse acordo influenciará nas contratações da Administração Pública dos países do hemisfério, principalmente do Brasil. Também será abordada a possibilidade do Poder Público brasileiro proteger as empresas nacionais quando realizar contratações, nos termos do ordenamento jurídico brasileiro.

A ALCA está em voga nas discussões internacionais entre os países do hemisfério, devido às pressões norte-americanas pela implantação do acordo o quanto antes. Além disso, a importância do tema do presente trabalho se apresenta uma vez que nas suas contratações o Estado brasileiro gasta uma verba considerável e uma maior abertura para o mercado exterior, principalmente para as empresas dos Estados Unidos da América, poderá gerar perdas para a indústria, agricultura e prestações de serviços nacionais.

O Presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, alertou nas eleições do ano de 2002 sobre as licitações para a compra dos novos caças supersônicos realizada pela Força Aérea Brasileira (FAB) e para a construção de plataformas para extração de petróleo em águas profundas pela Petrobrás, e o total descompromisso com a indústria nacional. O que deve ser verificado é se nosso ordenamento permite que nas contratações realizadas pela Administração Pública brasileira possa ser priorizada a defesa dos interesses nacionais.

2 – A ÁREA DE LIVRE COMÉRCIO DAS AMÉRICAS (ALCA)

O liberalismo apregoado até o início do Século XX defendia as trocas internacionais livres e os preços fixados apenas pelo mercado, o que segundo Plínio Arruda Sampaio era “perfeito na teoria mas defeituoso na prática”. Com a influência dos movimentos socialistas e suas revoluções, assim como as Constituições Sociais do México e de Weimar, além das duas guerras mundiais e do crack da bolsa de Nova Iorque de 1929, começou-se a adotar um certo protecionismo na economias dos Estados Nacionais, com os governos intervindo no mercado para proteger seus produtos, com tarifas alfandegárias, impostos e quotas de importação, e proibição da entrada de certos produtos. Era o período do “Estado do Bem Estar Social” (Estado Providência ou Estado Social). Com a crise no aparelho Estatal e o fortalecimento do sistema financeiro, voltou com toda a força nos anos 80 e 90 o liberalismo, agora chamado de neoliberalismo.

Estados fortes criaram blocos econômicos, praticando o que Plínio Arruda Sampaio chama de “protecionismo de grupo”, onde “nenhum país do grupo pode criar entraves à entrada de produtos e investimentos de empresas de outros países membros; mas, para empresas de países fora do grupo, a lei é o protecionismo”. [grifo do autor do artigo] Nessa esteira, surgiram vários blocos econômicos e áreas de livre comércio.

Do projeto de consolidação de dominação econômica dos EUA sobre a América Latina, em 1990, o então presidente George Bush pai lançou a “Iniciativa para as Américas”, que visava a eliminação das restrições para o comércio e os investimentos das megaempresas norte-americanas. A Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) foi lançada em dezembro de 1994, na “Cúpula das Américas” em Miami, com a presença de 34 líderes de países do hemisfério.

A ALCA é um projeto que pretende transformar as Américas do Norte, Central e do Sul em espaço onde seja livre o comércio entre seus povos, previsto para entrar em vigor, inicialmente, até 2005. Todos os países das Américas estão participando das negociações, exceto Cuba.

Foram criados 9 grupos de trabalho com representantes dos países americanos para tratarem das principais áreas de negociação, que são as seguintes: (a) acesso a mercados, (b) investimentos, (c) serviços, (d) compras governamentais, (e) solução de controvérsias, (f) agricultura, (g) direitos de propriedade intelectual, (h) subsídios/antidumping/direitos compensatórios e (i) políticas de concorrência.

Em setembro de 2002 ocorreu plebiscito sobre a ALCA, no qual 10 milhões de brasileiros votaram contra as negociações e o Acordo. Em junho de 2003 foi formada a Frente Parlamentar de acompanhamento das Negociações da ALCA, que é um grupo formado por deputados federais, que se reunirá quinzenalmente para acompanhar as negociações, sendo que uma das propostas é a realização de um plebiscito oficial. Vários setores da sociedade também estão exigindo que o Governo Lula realize um plebiscito oficial sobre a ALCA.

São vários os motivos que o Brasil tem para não assinar o tratado da ALCA, ou pelo menos de recusar o tratado nos termos propostos na atualidade. O Brasil que já foi considerado o “país do futuro”, ainda hoje tem grandes condições de se tornar uma das grandes economias do mundo, com indústria e agricultura mais fortes e competitivas. Entretanto, a abertura indiscriminada do comércio com países mais fortes economicamente pode fazer com que o país saia da situação intermediária que ocupa para uma situação de total dependência de outras nações. Países com estrutura produtiva complementar à dos EUA podem até ser beneficiados com a ALCA, nos termos propostos, mas não o Brasil, que ainda tem intenções de se tornar um país forte e que não teria tantos benefícios quanto outros países americanos.

Apenas como exemplo, a abertura comercial e desregulamentação ocorrida a partir do Governo Collor não levou o Brasil ao mercado norte-americano. Pelo contrário, no período 1994/2000 as exportações expandiram 26,5% e as importações 68,6%, com uma perda para o comércio brasileiro em torno de US$ 24,8 bi. A entrada do Brasil na ALCA ocasionaria um aumento ainda maior da importações, tendo pouca importância para as exportações. Note-se que o mercado norte-americano em termos de tarifas já é aberto, com apenas 150 produtos fortemente taxados (aqueles em que o país é menos competitivo). A proteção dos EUA ocorre por meio das barreiras não-tarifárias, inclusive com o sistema de subsídios (temas os quais os EUA não abrem mão nas negociações da ALCA). Ou seja, a liberdade de comércio para os norte-americanos tem perspectiva unilateral.

A ALCA ainda abrange quase todas as áreas da economia, com exceção do acesso ao mercado de trabalho norte-americano e às tecnologias monopolizadas pelo Governo e corporações norte-americanas.

Observe-se que enquanto a União Européia foi construída em 40 anos de negociações, tendo sido criados fundos de compensação aos países menos competitivos, com a abertura do mercado de trabalho, na ALCA não existirá qualquer compensação, num continente que a desigualdade econômica dos países é bem superior à realidade européia.

Saliente-se que com o NAFTA, o México ficou totalmente dependente dos EUA, sendo que 90% de suas exportações são para o país vizinho, exportações essas que são provenientes, na sua grande maioria, das transnacionais norte-americanas instaladas no México, as chamadas maquiadoras, que são indústrias de montagem de peças produzidas pelas fábricas estadunidenses. Para estas corporações, as maquiadoras oferecem mão-de-obra barata, vasto exército industrial de reserva, reduzida restrição às práticas predatórias do meio ambiente, sindicalismo dos trabalhadores frágil e salários reduzidos, fazendo com que os preços dos produtos ali produzidos sejam competitivos.

Aloizio Mercadante diz que “O Brasil é uma economia sem vantagens locacionais ‘a la mexicana’ e, por sua própria continentalidade, não tem como opção transformar-se em plataforma de exportação. É também o mercado interno mais atrativo da América Latina e é o único país com condições potenciais de contestar a hegemonia norte-americana na região. Por isso o Brasil é o principal alvo da ALCA e será sem dúvida o grande perdedor nesse processo de integração hemisférica”.

O Brasil, em contraposição à ALCA, deve fortalecer o MERCOSUL, ampliando sua abrangência para uma integração latino-americana, incorporando países como México, Venezuela e Colômbia (o Peru está sendo incluído); fortalecendo contatos com Japão e União Européia e com países com níveis de desenvolvimento parecidos com o do Brasil, como China, Índia, Rússia e África do Sul. Não há mais sentido, também, que seja mantido o bloqueio econômico impingido à Cuba.

Após a presente análise preliminar da ALCA, adentraremos ao tema específico do presente trabalho, que são as compras governamentais e a defesa do interesse nacional.

3 – AS COMPRAS GOVERNAMENTAIS NA ALCA

O Grupo de Negociação sobre Compras Governamentais está se reunindo desde 1998 para discutir o tema “Compras Governamentais” no âmbito da ALCA. Segundo a Declaração Ministerial de São José, “o objetivo geral das negociações sobre compras governamentais consiste em ampliar o acesso aos mercados de compras governamentais dos países da ALCA” [grifo do autor do artigo] e, mais especificamente, os objetivos são:

“- alcançar um marco normativo que assegure a abertura e a transparência nos procedimentos das compras governamentais, sem que isso implique necessariamente o estabelecimento de sistemas idênticos de compras governamentais em todos os países.

– assegurar a não-discriminação nas compras governamentais dentro de um alcance a ser negociado.

– assegurar um exame imparcial e justo para a solução das reclamações e recursos de fornecedores sobre as compras governamentais, e a implementação efetiva de tais soluções.” (Grifei.)

Uma primeira minuta do acordo foi divulgada em 03.07.2001, abordando os temas relacionados aos grupos de trabalho formados, sendo que em 01.11.2002 foi publicitada a segunda minuta, um documento que ainda está quase que totalmente em discussão no que concerne às compras governamentais no âmbito da ALCA.

O objetivo principal do capítulo é a ampliação do acesso a mercados para as compras governamentais dos países da ALCA, implantando princípios como o da não discriminação, transparência, entre outros. Pretende-se que cada nação aprove normas que efetivem o ideário relativo às compras governamentais na ALCA, como a proibição de se favorecer possíveis contratados em decorrência da sua nacionalidade ou exigência de medidas que dificultem a natureza do processo competitivo da licitação.

Note-se que a minuta define várias exceções de aplicação das regras relativas às compras governamentais aos países da ALCA. Entre elas, as contratações relativas à defesa e segurança nacional, nada tratando sobre a defesa à indústria nacional de cada país membro.

A minuta ainda define regras como a necessidade de divulgação das normas de cada nação relativas às suas contratações, assim como a publicidade relativa às licitações e contratações diretas dos Estados membros. Disciplina também algumas questões relativas ao processo de contratação, que deveria ser uniformizado nos países pertencentes à ALCA.

Paulo Nogueira Batista Jr, sobre as compras governamentais, informa que os EUA pretendem restringir o tratamento discriminatório entre os países da ALCA, e que “também ficaria proibida a incorporação, nesses contratos, de cláusulas que estabeleçam níveis de conteúdo doméstico ou índices de nacionalização, licenciamento de tecnologia, compromissos de investimento e outros requisitos que ‘distorçam’ o comércio”. (Grifei.) O autor ainda aduz que “para garantir o cumprimento desses compromissos, os EUA buscam a incorporação ao acordo da ALCA de procedimentos que permitam aos fornecedores contestar alegadas violações das regras referentes a compras governamentais e licitações públicas. A efetividade desses procedimentos seria assegurada por medidas temporárias de rápida implementação, incluindo a possibilidade de suspender licitações ou a execução de contratos aprovados.”

Com a abertura sugerida no que concerne às compras governamentais, os EUA pretendem maior liberdade para vender ao Governo brasileiro, que é um grande comprador de serviços e bens de alta tecnologia.

Os norte-americanos pretendem discutir nas negociações da ALCA os pontos que lhe favorecem e que vão contra os interesses brasileiros (compras governamentais, serviços, propriedade intelectual e investimentos), de forma mais rigorosa do que está sendo tratado no âmbito da OMC (Organização Mundial do Comércio), enquanto pontos desinteressantes aos EUA e considerados como barreiras para as exportações do Brasil (subsídios da agricultura, protecionismo na legislação antidumping e do protecionismo comercial), os nossos “amigos” do norte desejam levar para a rodada da OMC.

A oferta norte-americana divulgada em fevereiro/2003, da USTR (United States Trade Representative), nos termos do TPA (Trade Promotion Authorize), com relação aos produtos industriais e agrícolas, prevê menos benefícios aos países do MERCOSUL, privilegiando os países do CARICOM, e em menor monta os da América Central e os andinos. A proposta estadunidense ainda não abre mão da proteção de seus produtos sensíveis, quando propõe prazos de 5, 10 ou mais anos para desonerar a importação dos EUA de produtos do MERCOSUL, podendo a proteção tarifária e não-tarifária ser mantida indefinidamente com relação a muitos bens.

Assim, para produtos estratégicos dos EUA (mais de 300, conforme lista do TPA) serão mantidas barreiras, como os de grande interesse do Brasil, como suco de laranja, açúcar, fumo, calçados, aço, carnes, têxteis, soja, entre outros.

O Governo Federal atual, em resposta à proposta estadunidense, em conjunto com os demais países do MERCOSUL, não apresentou oferta com relação às compras governamentais, aos serviços e aos investimentos estrangeiros, remetendo a discussão à OMC, além de fixar uma grande parte dos bens comuns do MERCOSUL com proteção assegurada por até 10 anos ou mais.

O ex-chanceler Luiz Felipe Lampreia entende que o Brasil deve fazer ofertas de liberação nas áreas em que o país é mais competitivo e resguardar setores mais sensíveis à concorrência externa, e que o país não pode fazer propostas ousadas em serviços e compras governamentais, áreas em que tem posição defensiva.

A negociação entre MERCOSUL e EUA no formato 4+1, defendida por Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, segundo Aloizio Mercadante confere uma maior flexibilidade e agilidade nas negociações, sendo possível retirar temas “espinhosos”, com evidentes benefícios aos países envolvidos, fortalecendo o MERCOSUL. A “ALCA Light” ou “ALCA Mínima” proposta pelo Governo brasileiro não está sendo bem vista por representantes do empresariado norte-americano, que preferem, se for dessa forma, firmar acordos bilaterais. O Governo dos EUA já está buscando acordos bilaterais, fechando um com o Chile e armando outro com a Colômbia, enquanto o Governo brasileiro está tentando outros mercados, como o da China, Turquia e Índia. Note-se que os EUA dão preferência aos parceiros que resistem menos, que não alegam ter tantos produtos sensíveis, buscando isolar países grandes como o Brasil.

Saliente-se que a última rodada de negociações da OMC está prevista para janeiro de 2005, não sendo interessante que as discussões da ALCA sejam fechadas antes dos acordos da OMC. A Rodada de Doha da OMC está praticamente parada, uma vez que os europeus estão se recusando a negociar o seu protecionismo agrícola.

A proposta apresentada pelos EUA no tocante às compras governamentais ofereceu, com a intenção de que o mesmo fosse feito pelos outros integrantes da ALCA, compromisso de garantir transparência e acesso efetivo nas contratações de cada país, apresentando duas ofertas, uma básica e outra avançada. Na oferta básica, semelhante ao que é desfrutado pelos atuais parceiros do NAFTA, seria concedido às empresas dos países da ALCA a capacidade não discriminatória de competir por contratos de quase todos os bens e serviços adquiridos por 51 agências federais do governo dos EUA. Já a proposta avançada, realizada aos países do CARICOM, é oferecido acesso às compras de uma relação ampliada de aproximadamente 79 agências federais, sendo que essas agências adicionais já estão incluídas no acordo de livre comércio dos EUA com o Chile. As ofertas se aplicariam a quase todos os produtos e serviços a serem contratados pelas agências listadas na oferta, com restrições limitadas (seria uma “lista negativa”).

O Ministro Celso Amorin defende que o Governo brasileiro trate as compras governamentais dentro de uma política industrial para o país, antes que seja formulada a própria proposta do Brasil sobre o tema para a ALCA. Entende ainda que o Governo brasileiro deve seguir a experiência norte-americana, cuja maior parte das compras governamentais, que é de armas e equipamentos militares, é restrita, por lei, a fornecedores locais. Informa o Ministro que no Brasil a maioria das compras governamentais envolve a área civil, mas, segundo ele, isso não impede que o país defina itens que devam ser fornecidos por empresas brasileiras, para que haja um desenvolvimento setorial.

O Brasil vem movimentando bilhões de reais ao ano com suas contratações governamentais, podendo estas ser um meio de incentivo às políticas industriais nacionais, inclusive às micro e pequenas empresas. O Estado como instrumento de política industrial vem sendo utilizado a longo tempo pelo Japão (Accounts Law/1947) e EUA (Buy American Act/1933 e Small Business Act/1953), o que não ocorre, infelizmente, no Brasil.

Segundo o Small Business Act, as micro e pequenas empresas norte-americanas (até 500 empregados) têm tratamento diferenciado no país, uma vez que as compras governamentais realizadas pela Administração Pública norte-americana de até US$ 100.000 devem ser realizadas com empresas deste porte, com procedimentos administrativos simplificados. Compras acima de US$ 1 milhão para construção e US$ 500 mil para bens e serviços, a legislação estadunidense determina que o contratado apresente plano de subcontratação de pequenas empresas.

Existem diversas restrições a produtos estrangeiros e favorecimento aos bens produzidos nos EUA na legislação norte-americana. Por mais que com a implementação da ALCA possa cair a barreira de que em certas situações os bens a serem adquiridos sejam com mais de 50% de componentes locais (Buy American Act), uma grande parte do mercado norte-americano pode ficar intransponível às empresas de fora dos EUA em face à outras exceções, como a já citada relativa às micro e pequenas empresas. Até o México e o Canadá, mesmo com o NAFTA, reclamam das barreiras que ainda existem na legislação dos EUA.

A FAR (Federal Acquisition Regulation), que é o normativo que consolida as políticas e os procedimentos administrativos aplicados nas contratações governamentais estadunidenses, dispõe que “a assinatura de acordo comercial com os Estados Unidos derroga as restrições do Buy American Act, permitindo que produtos estrangeiros participem de licitações governamentais em condições de igualdade com os produtos americanos. A derrogação das restrições e preferências não alcança, contudo, as compras governamentais reservadas para as pequenas empresas (FAR 25.401)”, conforme relato de Heloísa Camargos Moreira e José Mauro de Morais.

Em 2001 as compras norte-americanas totalizaram um montante de US$ 234,9 bilhões (trinta vezes as compras do setor federal brasileiro), o que de nada adiantará para o Brasil se certas barreiras forem mantidas ou se as empresas brasileiras não forem competitivas suficientes e com uma logística organizada, como a existência de representantes comerciais e assistência técnica local.

Outra norma que pode ser mantida mesmo com a ALCA é a que obriga o plano de subcontratação das micro e pequenas empresas, o que ainda não está claro se será mantida com a ALCA. As empresas norte-americanas localizadas em áreas de menor desenvolvimento podem ser contratadas diretamente para valores de até US$ 5 milhões. A proteção é ainda maior para os setores militares e NASA (Buy American Act), o que continuará existindo mesmo com a ALCA.

Luiz Carlos Prado defende que não é bom para o Brasil promover uma grande abertura em compras governamentais e serviços na ALCA, afirmando que as compras governamentais representam uma oportunidade para que o Brasil privilegie compras locais em concorrências públicas, pois “esse é um instrumento de política industrial”. (Grifei.)

Devido ao grande volume de recursos financeiros que envolvem as compras governamentais brasileiras, tanto no âmbito federal, estadual, quanto municipal, essas podem ser um importante instrumento de incentivo à produção nacional e geração de empregos, caso exista uma disposição em se dar prioridade aos bens e serviços nacionais nas contratações realizadas pela Administração Pública direta e indireta brasileira. Além disso, o Brasil não pode fazer propostas ousadas nas compras governamentais, pois é uma área que o país tem posição defensiva.

Por fim, informamos sinteticamente a situação das compras governamentais no âmbito do MERCOSUL. Entendo que não devemos ser céticos com relação ao futuro desse acordo, mesmo porque, apenas com o Mercado Comum do Sul consolidado os países da América do Sul terão força para realizarem outras negociações. Samuel Pinheiro Guimarães alerta que “o eventual acordo da ALCA terá que ser compatível com as normas da OMC (…) consagradas em acordos, a maioria dos quais o Brasil faz parte”, como o de investimentos, propriedade intelectual e em normas sobre antidumping e subsídios. “Tal não ocorre com o acordo de compras governamentais, tema sobre o qual o MERCOSUL vem legislando, prevendo inclusive uma preferência interna” (grifei), conclui.

Depois de mais de quatro anos de discussões (desde 1998), com atrasos em decorrência à crise do bloco, o Grupo Mercado Comum (GMC) do MERCOSUL está estudando o “Protocolo sobre Compras Governamentais”. Note-se que no âmbito do MERCOSUL existem algumas áreas de atrito entre Brasil e Argentina, principalmente com relação às compras governamentais, e questões como o regime automotivo e o comércio de açúcar. Há certa disparidade nos gastos governamentais entre os países, pois apenas o Poder Executivo Federal no Brasil contrata R$ 18 bi anuais, sendo que a Argentina, há dois anos, R$ 3 bi.

4 – AS CONTRATAÇÕES GOVERNAMENTAIS BRASILEIRAS E O INTERESSE PÚBLICO NACIONAL

Na eleição presidencial de 2002, um dos temas discutidos foi a questão das compras governamentais brasileiras e a defesa dos interesses nacionais. O Presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, alertou sobre a licitação para a compra dos novos caças supersônicos realizada pela Força Aérea Brasileira (FAB) e o processo licitatório para a construção de plataformas para extração de petróleo em águas profundas pela Petrobrás. Disse o então candidato que as contratações da Petrobrás e da FAB podem ter influência fundamental no desenvolvimento da indústria aeronáutica e dos estaleiros brasileiros, uma vez que, no caso da FAB, a pura e simples importação dos aviões apenas agravaria o déficit comercial brasileiro e perpetuaria a nossa dependência tecnológica, enquanto que sobre as plataformas, seria um absurdo que uma empresa estatal, a Petrobrás, exportasse dinheiro e empregos, em face à atual situação da economia brasileira.

A FAB estava realizando licitação para a compra de 12 novos aviões caças, para substituição dos Mirage F-103 da base de Anápolis (GO), negócio de aproximadamente US$ 700 milhões, e o certame foi suspenso por pelo menos um ano pelo Governo atual.

A Petrobrás, no ano de 2002, contratou uma empresa que construirá a maior parte da plataforma P-50 em Cingapura, e está realizando licitações para a construção de pelo menos outras quatro (P-51, 52, 53 e 54). As regras das licitações para a contratação das plataformas P-51 e P-52 (orçadas em US$ 1 bilhão) foram alteradas no Governo atual, e as novas licitações abertas no ano de 2003 (P-53 e P-54) já foram iniciadas com regras que garantem a presença da indústria nacional.

Pode-se garantir de duas formas o conteúdo nacional mínimo: ou fixando um percentual, que pode variar de 40% a 60% do total das encomendas, ou obrigando o vencedor a fazer algumas partes da obra e comprar certas peças no país. Como uma das principais bandeiras do então candidato Lula, com o ideário de que o Estado deve ser um agente ativo de política industrial por meio de suas compras, nas licitações da Petrobrás realizadas no novo Governo Federal está sendo exigido um percentual mínimo reservado à indústria nacional (conteúdo nacional de no mínimo 60% a 75%), excluindo-se as compras de equipamentos que não são feitos no Brasil, para o estímulo da indústria brasileira e geração de empregos, obrigando que a construção e a montagem de boa parte das plataformas seja no Brasil.

Julio Gomes de Almeida entende que “no Brasil, é necessário resgatar o poder de compra do Estado, sobretudo para o país ter condições para desenvolver uma política tecnológica, até mais importante que a industrial”. As aquisições relativas à informatização do aparelho Estatal, as compras dos aviões da FAB, as compras da Petrobrás têm que levar em conta o incentivo ao desenvolvimento nacional. A agência aeroespacial norte-americana (NASA), não apenas compra mas também financia pesadamente pesquisas de novos materiais, microeletrônica, lembra Gomes de Almeida.

Enfim, não é compatível com o interesse público nacional a contratação de empresas estrangeiras situadas fora do Brasil para a execução/fornecimento desses objetos a serem contratados, sem se levar em conta a questão da remessa de dinheiro para o exterior e a própria exportação de investimentos e empregos.

Outro ponto a ser melhor analisado é se é possível que o Governo brasileiro privilegie os interesses nacionais em compras governamentais de grande vulto como as aqui citadas.

Uma das primeiras emendas constitucionais aprovadas no Governo Fernando Henrique, a EC nº 06/95, que segundo Paulo Bonavides “insere-se no esquema de desnacionalização da economia brasileira, fomentada pelo neoliberalismo instalado no poder”, entre outras coisas, revogou o art. 171 da Constituição da República, que disciplinava o seguinte:

“Art. 171. São consideradas:

I – empresa brasileira a constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País;

II – empresa brasileira de capital nacional aquela cujo controle efetivo esteja em caráter permanente sob a titularidade direta ou indireta de pessoas físicas domiciliadas e residentes no País ou de entidades de direito público interno, entendendo-se por controle efetivo da empresa a titularidade da maioria de seu capital votante e o exercício, de fato e de direito, do poder decisório para gerir suas atividades.

§ 1º – A lei poderá, em relação à empresa brasileira de capital nacional:

I – conceder proteção e benefícios especiais temporários para desenvolver atividades consideradas estratégicas para a defesa nacional ou imprescindíveis ao desenvolvimento do País;

II – estabelecer, sempre que considerar um setor imprescindível ao desenvolvimento tecnológico nacional, entre outras condições e requisitos:

a) a exigência de que o controle referido no inciso II do “caput” se estenda às atividades tecnológicas da empresa, assim entendido o exercício, de fato e de direito, do poder decisório para desenvolver ou absorver tecnologia;

b) percentuais de participação, no capital, de pessoas físicas domiciliadas e residentes no País ou entidades de direito público interno.

§ 2º – Na aquisição de bens e serviços, o Poder Público dará tratamento preferencial, nos termos da lei, à empresa brasileira de capital nacional.” (Grifei.)

Com a revogação desse dispositivo constitucional, que trazia as definições de empresa brasileira e empresa brasileira de capital nacional, pretendeu-se acabar com qualquer vantagem para as empresas brasileiras de capital nacional, sobre as empresas instituídas no Brasil que não tenham capital eminentemente nacional. Segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho, “sua supressão visa estabelecer igualdade entre empresas, de capital nacional ou não, no mercado brasileiro”.

O que continua vigente, assim, é a definição de sociedade anônima nacional, disposta no art. 60 do Decreto-Lei nº 2.627/40: “São nacionais as sociedades organizadas na conformidade da Lei brasileira e que têm no País a sede de sua administração”. A mesma é a definição de sociedade nacional no novo Código Civil brasileiro (Lei nº 10.406/2002), art. 1.126: “É nacional a sociedade organizada de conformidade com a lei brasileira e que tenha no País a sede de sua administração”. Com o desaparecimento do conceito de empresa brasileira de capital nacional, José Afonso da Silva alerta:

“Assim, temos, agora, empresas brasileiras e empresas não-brasileiras, com diferença exclusivamente formal entre elas, pois basta que a empresa estrangeira ou multinacional (ou parte dela) se organize aqui segundo as leis brasileiras e tenha sede aqui para ser reputada brasileira, pouco importando a nacionalidade de seu capital e a nacionalidade, domicílio e residência das pessoas que detêm o seu controle”. [grifo do autor do artigo]

Antes da EC nº 06/97 não havia dúvida sobre a possibilidade da Administração Pública brasileira, quando fosse contratar bens ou serviços, desse tratamento preferencial às empresas brasileiras de capital nacional.

Contudo, mesmo não existindo mais o conceito de empresa brasileira de capital nacional na Constituição da República, ainda há em nosso ordenamento as empresas nacionais, com sede e administração no país, e criadas conforme a legislação brasileira, que poderão ter benefícios em licitações realizadas pela Administração Pública brasileira, desde que seja demonstrado que com essa contratação sejam mantidos ou criados postos de trabalho, investimentos e mais tecnologia em nosso país.

Note-se, ainda, que Celso Antônio Bandeira de Mello entende que a revogação do art. 171 da Constituição “só poderia interferir com benefício concedido a empresa brasileira de capital nacional”, sendo “inequívoco que não foram afetadas outras preferências estabelecidas em prol de bens e serviços produzidos no País ou com maior valor agregado local”. O autor ainda aduz que mesmo não existindo mais a obrigação de haver lei nacional que dê preferências às empresas brasileiras de capital nacional, não há impedimento que sejam mantidas ou existam novas leis que possibilitem essa preferência, concluindo que “de modo algum, procede o entendimento segundo o qual, a partir da Emenda Constitucional nº 6/95, deixaram de ser admissíveis preferências estabelecidas em favor de empresa brasileira de capital nacional”. [grifo do autor do artigo]

Um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, segundo o art. 3º, inc. II, da nossa Constituição, é a garantia do desenvolvimento nacional:

“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

(…)

II – garantir o desenvolvimento nacional;”

Assim, a Administração Pública ao realizar contratações, seja por meio de licitação, dispensa ou inexigibilidade, deve atentar para o princípio que almeja atingir o desenvolvimento nacional. Sobre esse princípio fundamental constitucional, Eros Roberto Grau diz o seguinte:

“Garantir o desenvolvimento nacional é, tal qual construir uma sociedade livre, justa e solidária, realizar políticas públicas cuja reivindicação, pela sociedade, encontra fundamentação neste art. 3º, II. O papel que o Estado tem a desempenhar na perseguição da realização do desenvolvimento, na aliança que sela com o setor privado, é, de resto, primordial.” (Grifei.)

Alerte-se que o inc. XXI do art. 37 da Constituição deve ser interpretado levando-se em conta o princípio da garantia do desenvolvimento nacional:

“XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.” (Grifei.)

Como regra, uma licitação (ou contratação direta) deve atender o interesse público no sentido de buscar a melhor proposta para a Administração, sempre com a preocupação de não desrespeitar princípios como o da isonomia, legalidade, etc. Entretanto, um dos princípios fundamentais que a Administração Pública deve levar em conta é a necessidade de garantia do desenvolvimento nacional.

O art. 3º da Lei nº 8.666/93, que é a Lei Nacional das Licitações e Contratos Administrativos, disciplina que a licitação deve observar o princípio constitucional da isonomia e selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração, e o seu § 1°, inc. I, ainda proíbe a restrição ao caráter competitivo do processo licitatório, a não ser que existam circunstâncias pertinentes e relevantes que justifiquem alguma restrição. O art. 3º, § 1º, incs. I e II, da Lei nº 8.666/93, dispõe o seguinte:

“Art. 3º. A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos.

§ 1°. É vedado aos agentes públicos:

I – admitir, prever, incluir ou tolerar, nos atos de convocação, cláusulas ou condições que comprometam, restrinjam ou frustrem o seu caráter competitivo e estabeleçam preferências ou distinções em razão da naturalidade, da sede ou domicílio dos licitantes ou de qualquer outra circunstância impertinente ou irrelevante para o específico objeto do contrato;

II – estabelecer tratamento diferenciado de natureza comercial, legal, trabalhista, previdenciária ou qualquer outra, entre empresas brasileiras e estrangeiras, inclusive no que se refere a moeda, modalidade e local de pagamentos, mesmo quando envolvidos financiamentos de agências internacionais, ressalvado o disposto no parágrafo seguinte e no art. 3° da Lei n° 8.248, de 23 de outubro de 1991.” (Grifei.)

Como se vê, mesmo a Lei nº 8.666/93 permite que haja cláusulas no edital de licitação que restrinja o caráter competitivo da licitação, estabelecendo preferências ou distinções em razão da naturalidade, da sede ou do domicílio dos interessados, desde que, é claro, seja uma circunstância pertinente e relevante para o objeto do contrato, devidamente demonstrada.

Sobre os dispositivos citados, Marçal Justen Filho entende que “afigura-se juridicamente inconstitucional vedar ao estrangeiro participar de licitação”, alegando a vigência do art. 3º, § 1º, inc. II, reiterando “o princípio da isonomia entre nacionais e estrangeiros”. O autor alega que “as garantias de igualdade não são afetadas pela naturalidade e nacionalidade” (conforme caput do art. 5º da Constituição), e que “é vedado estabelecer preferências em virtude da nacionalidade do licitante. Especialmente quando se trate de pessoa física”. Por fim, Justen Filho ainda entende que com a revogação do art. 171 da Constituição, “não há mais fundamento constitucional para estabelecer preferência em favor de empresa brasileira”.

Entendemos que o princípio constitucional fundamental estampado no art. 3º, inc. II, da nossa Carta Magna e a própria Lei de Licitações Nacional permitem que a Administração Pública brasileira busque em suas contratações a garantia do desenvolvimento nacional, mesmo com a revogação do art. 171. Assim, é possível que o Poder Público, com as devidas justificativas, dê preferência para a contratação de empresas nacionais ou mesmo de produtos fabricados com conteúdo nacional.

5 – CONCLUSÕES

Diante de todo o exposto, concluímos que são vários os motivos para o Brasil não concordar com a ALCA nos termos propostos, devendo ser prioritário o fortalecimento do MERCOSUL, até com sua ampliação a toda a América Latina, e aumento de contatos comerciais com países de outros continentes.

Com relação às compras governamentais, existem várias dificuldades na negociação, pois nem o Brasil, nem os Estados Unidos abrem mão de certas questões, sendo que a divergência também se mantém sobre que pontos serão discutidos apenas na OMC.

O fato é que o Brasil deve tratar as suas compras governamentais com o intuito de fortalecer a política industrial do país, pois movimenta bilhões em suas contratações, e definir certos produtos que devem ser fornecidos apenas por empresas nacionais, assim como faz os EUA com as armas e equipamentos militares e com os incentivos às suas micro e pequenas empresas.

Por fim, entendemos que o nosso ordenamento jurídico permite que a Administração Pública brasileira, como no exemplo da Petrobrás, com as devidas justificativas, realize licitações com regras que garantam a presença da indústria e de produtos nacionais, excluindo-se as compras de equipamentos e contratações de serviços que não sejam fabricados ou realizados no Brasil, evitando-se a exportação de investimentos e empregos.

Tarso Cabral Violin é professor de direito administrativo e integrante do Núcleo de Pesquisa em Direito Público do Mercosul – Nupesul, centro ligado à Universidade Federal do Paraná.

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