Por: Maria Lucia Ciampa Benhame Puglisi
A legislação trabalhista é protecionista, privilegia o empregado, contém dispositivos atrasados que prejudicam a flexibilização e modernização das relações de trabalho etc. são queixas recorrentes nas empresas, as quais não serão discutidas aqui. Mas e as queixas de que o processo trabalhista privilegia o empregador? E de que o “rito do processo judiciário do trabalho, no entanto, faculta ao empregador infinitas formas de procrastinar o cumprimento de uma decisão de primeira instância”?
Pode parecer fantasia, mas as aspas acima não são enfeites. Elas significam que a citação é literal e pode ser encontrada nas justificativas de um projeto de lei em trâmite no nosso Poder Legislativo. Se tal projeto visa alterar dispositivos da lei trabalhista, mais especificamente normas processuais, então porque “licitação” no título?
Porque na realidade o projeto de lei em questão altera dispositivos da Lei de Licitações. A Lei nº 8.666, de 1993, indica em sua seção II os requisitos para habilitação de uma empresa interessada em participar de licitações. Vários documentos são exigidos, entre eles comprovação de habilitação jurídica, qualificação técnica e econômico-financeira e regularidade fiscal. Todos esses itens são indicados de maneira mais precisa nos artigos 28 a 31, este último tratando da qualificação econômico-financeira, exigindo a apresentação de balanço patrimonial, certidão negativa de falência e concordata e garantia do objeto da contratação.
O Projeto de Lei nº 206, de 2005, do Senado, que atualmente encontra-se na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, tendo como relator o senador Magno Malta, insere o inciso IV no artigo 31, estabelecendo ainda a obrigação de apresentação de prova de quitação de débitos trabalhistas. Mas o que é prova de quitação de débitos trabalhistas? Inexistência de ações judiciais? Inexistência de ações judiciais em fase de execução? Inexistência de execuções com embargos ou recursos próprios?
A lei não diz. O texto legal é simples: o artigo 31 da Lei nº 8.666 de 21 de junho de 1993 passa a vigorar acrescido do seguinte inciso: “Artigo 31: a documentação relativa à qualificação econômico-financeira limitar-se-á à prova de quitação de débitos trabalhistas fornecida pelo órgão da Justiça do Trabalho da jurisdição do licitante.”
Todas as provas exigidas pela lei como prova de qualificação econômico-financeira são comprovações objetivas, não decorrentes normalmente de uma sentença oriunda de um processo de conhecimento longo. O projeto de lei não traz nenhuma definição legal sobre o débito trabalhista, e as razões contidas em sua justificativa também não ajudam. As justificativas da lei formam um conjunto de queixas contra o empresariado desenhado como uma entidade quase desonesta que movimenta milhões e só porque quer nega-se a pagar débitos de trabalhadores lesados prejudicados, vitimas de uma legislação trabalhista que “em sua parte processual é bem mais generosa com o empresário”.
O texto das justificativas da lei mostra um retrato distorcido da realidade e do empresariado, parecendo mais um texto vingativo e rancoroso que não tem como intuito regulamentar licitações prejudicadas por más escolhas de empresas inadimplentes e que causam prejuízo ao erário público ou que cobram propinas para sabe-se lá qual destino – o que seria de se esperar em uma alteração na Lei de Licitações. Trata-se de buscar uma forma de punir o empresário que tem ações na Justiça do Trabalho sem sequer questionar suas finalidades, procedência ou improcedência finais, nem mesmo definindo o que seria um débito trabalhista.
O Projeto de Lei nº 206 do Senado insere o inciso IV no artigo 31 da Lei de Licitações, estabelecendo a nova obrigação.
A justificativa da lei é a de que obrigações trabalhistas não são pagas por vontade do empresário e que a parte mais sensível do corpo humano é o bolso. Diz ainda que tal parte sensível não deve ser diferente no “corpo empresarial” e, portanto, em vista da inexistência de possibilidade de inserção de punição mais grave na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) contra o inadimplente, passar a exigir a quitação trabalhista como se exige a regularidade fiscal com o fisco e com a Previdência Social.
A intenção – exigência de regularidade trabalhista – não é por si só ruim. No entanto, os pressupostos do projeto da lei são preconceituosos. Ainda se tem no Brasil a imagem do patrão desonesto que não paga porque não quer. Motivos como dificuldades financeiras, verbas discutíveis, verbas exageradas e direitos constitucionais de defesa não são considerados.
Para o sucesso da iniciativa é necessário que o projeto seja melhorado, indicando objetivamente o que se entende por certidão de regularidade de débitos trabalhistas – ou qualquer um que tenha ações na Justiça do trabalho estaria “negativado”?
E quando o débito trabalhista é constituído sem incertezas? Poderíamos considerar no término da discussão da correção do cálculo de liquidação. No entanto, o momento para tal discussão para o reclamado só surge após o início da execução já com uma penhora efetivada, em embargos à execução. Portanto, os embargos à execução e o agravo de petição – recursos cabíveis na execução trabalhistas – não denotam “procrastinação”, são o momento processual correto para discussão do quantum devido. Há impedimento legal de que essa discussão ocorra em momento anterior.
Considerar que tais recursos são procrastinatórios é ir contra o direito de defesa previsto em lei. Fossem procrastinatórios simplesmente, as penhoras on line, hoje utilizadas até mesmo em execuções provisórias, teriam conseguido extingui-los. Por que então continuar a discutir cálculos com o numerário já bloqueado? Por que alguma incorreção se verifica, na ótica do executado, que justifica o recurso.
Mas não é só. Também a Justiça do Trabalho deve se adequar à exigência permitindo a expedição da certidão – a exemplo do fisco e da Previdência Social -, certidão positiva com efeitos negativos quando há discussão judicial sobre o débito apontado pelo órgão expedidor, discutindo-o.
Assim, mais uma vez vemos um projeto de lei que pensa em um ponto da questão de maneira superficial, mas não o analisa no conjunto das relações jurídicas dela decorrentes, e que pode aumentar a ida ao Poder Judiciário com mandados de segurança ou questionamentos de constitucionalidade. É necessário fazer uma revisão cuidadosa da lei para que não sejam geradas ilegalidades e, mais ainda, repensar-se suas justificativas – pois essa não é a realidade do empresariado brasileiro -, sob pena de apenas gerar-se mais um problema.