RHS Licitações

As prerrogativas das microempresas, empresas de pequeno porte e microempreendedores individuais nas contratações públicas em face da Covid-19

Com fundamento na Constituição Federal, em seu art. 146, inciso III, alínea ‘d’, art. 170, inciso IX e art. 179, foi expedida a Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006 que estabelece normas gerais relativas ao tratamento diferenciado e favorecido a ser dispensado às microempresas, empresas de pequeno porte e microempreendedor individual (MPEs) no âmbito dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Referida norma teve sua redação atualizada pela Lei Complementar nº 147, de 7 de agosto de 2014 e posteriormente pela Lei Complementar nº 155, de 27 de outubro de 2016 e apresenta prerrogativas de evidente impacto no âmbito das contratações públicas, nos termos do seu capítulo “V” que trata do acesso ao mercado.
A concessão de tratamento diferenciado e simplificado para as MPEs nas contratações é dever da Administração Pública, objetivando a promoção do desenvolvimento econômico e social no âmbito municipal e regional, a ampliação da eficiência das políticas públicas e o incentivo à inovação tecnológica.
Importante salientar que a licitação sempre se constituiu em atividade de desenvolvimento econômico sustentável, geração de emprego e renda e erradicação da pobreza, como preconizado inicialmente no Plano Plurianual para o período de 2004/2007 (Lei Federal nº 10.933, de 11 de agosto de 2004), cujo desafio era “incentivar e fortalecer as micro, pequenas e médias empresas com o desenvolvimento da capacidade empreendedora”. Para tanto, dentre as diretrizes fixadas, destaca-se a utilização do poder de compra do governo no
fortalecimento das micro, pequenas e médias empresas.

Entende-se por poder de compra o “poder do consumidor, seja ele empresa privada, órgão público, cooperativa ou pessoa física, que ao adquirir bens e serviços define suas exigências e necessidades, tornando-se um indutor da qualidade, da produtividade, e de inovação tecnológica, gerando emprego, ocupação e renda e, contribuindo para a
competitividade e desenvolvimento do país”.

A própria Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993 dispõe no caput do seu art. 3o que dentre os objetivos da licitação, consta a promoção do desenvolvimento nacional sustentável, de modo que o §14 assevera que as preferências definidas neste artigo e nas demais normas de licitação e contratos devem privilegiar o tratamento diferenciado e favorecido às microempresas e empresas de pequeno porte na forma da lei.
Já o art. 5º-A da Lei nº 8.666/93 não deixa dúvidas sobre a necessidade de que as normas de licitações e contratos devem privilegiar o tratamento diferenciado e favorecido às microempresas e empresas de pequeno porte na forma da lei.
Ademais, imperioso reconhecer que tais prerrogativas existem em virtude da importância que as MPEs simbolizam para o país. Segundo dados do SEBRAE (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), as MPEs representam cerca de 98,5% do total de empresas privadas, respondem por 27% do PIB e são responsáveis por 54% do total de empregos formais existentes no país, empregando mais trabalhadores com carteira assinada que as médias e grandes empresas.
Feitos tais apontamentos iniciais e considerando a pandemia causada pelo novo coronavírus (COVID-19) que afetou as relações sociais, comerciais, políticas, econômicas com uma crise global sem precedentes, necessário se faz, avaliar o atual cenário e o impacto nos pequenos negócios.
Diante de tal contexto, os números se revelam alarmantes principalmente pelos efeitos econômicos da pandemia, que até o dia 09 de abril de 2020 já havia gerado o fechamento de pelo menos 600 mil micro e pequenas empresas.
Esse momento de incertezas e dificuldades, exigiu do Governo a adoção de medidas no Sistema Financeiro para apoio aos pequenos negócios, que através do Banco Central e do Conselho Monetário Nacional procurou minimizar os efeitos nefastos da COVID-19, oferecendo, por exemplo, linhas de crédito para o mercado em condições especiais.
Outra medida instituída pelo Governo, foi o Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (Pronampe) para o desenvolvimento e o fortalecimento do pequeno negócio, nos termos da Lei 13.999 de 18 de maio de 2020.
Já em 28 de maio de 2020, foi publicada no Diário Oficial da União, a Lei Complementar nº 173, de 27 de maio de 2020, que estabelece o Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus, com destaque para o art. 5o. inciso II, § 8º, que assim dispõe:

Art. 5º A União entregará, na forma de auxílio financeiro, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, em 4 (quatro) parcelas mensais e iguais, no exercício de 2020, o valor de R$ 60.000.000.000,00 (sessenta bilhões de reais) para aplicação, pelos Poderes Executivos locais, em ações de enfrentamento à Covid-19 e para mitigação de
seus efeitos financeiros, da seguinte forma:
(…)
II – R$ 50.000.000.000,00 (cinquenta bilhões de reais), da seguinte forma:
a) R$ 30.000.000.000,00 (trinta bilhões de reais aos Estados e ao Distrito Federal;
b) R$ 20.000.000.000,00 (vinte bilhões de reais aos Municípios;
§ 8º Sem prejuízo do disposto no art. 48 da Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006, em todas as aquisições de produtos e serviços com os recursos de que trata o inciso II do caput, Estados e Municípios darão preferência às microempresas e às empresas de pequeno porte, seja por contratação direta ou por exigência dos
contratantes para subcontratação.

É de se observar a sensibilidade do legislador na elaboração da norma, ao determinar que Estados e Municípios concedam preferência às MPEs em todas as aquisições de produtos e serviços que utilizarem esses recursos disponibilizados pela União em ações de enfrentamento e mitigação dos efeitos financeiros da COVID-19.
Do mesmo modo, no âmbito dos Órgãos de Controle Externo, o Tribunal de Contas da União reconheceu a importância de existir política de incentivo à participação de MPEs em licitações, visto que o fomento às MPEs tem por objetivo dinamizar setores reconhecidamente responsáveis pelo sustento de milhões de famílias, ainda mais nesse período de pandemia, nos termos do Acórdão nº 892/2020 TCU Plenário.
Para o Ministro Relator Weder de Oliveira: “(…) a existência da referida política se mostra mais importante no contexto atual, em que, no âmbito das medidas para se limitar o contágio relacionado à Covid-19, com vistas a promover o maior isolamento da população, em todo o país, estão sendo tomadas medidas para determinar o fechamento de estabelecimentos comerciais, industriais, entre outros. As ME/EPP poderão ser prejudicadas e, por consequência, por oferecerem a maior parcela de empregos no país, pode haver grande impacto no índice de desemprego e no desempenho da economia do país. Portanto, trata-se de uma política pública das mais importantes, com a finalidade de, sem deixar de buscar propostas vantajosas para o Estado, auxiliar os micros e pequenos empreendedores a acessar o relevante mercado das compras governamentais.”
Sobre o tema, a ATRICON (Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil) em apoio ao movimento realizado pelo SEBRAE através do Ofício nº 043/2020 emitiu orientação às Cortes de Contas para que repliquem a mensagem aos respectivos jurisdicionados com vistas à manutenção e eventual ampliação do mercado de compras públicas junto às micro e pequenas empresas, auxiliando para que se mantenham ativas e aptas a sustentarem o vínculo laboral com seus funcionários.
Dada a relevância do tema, as MPEs foram contempladas na Resolução Conjunta ATRICON/ABRACOM/ AUDICON/ CNPTC/ IRB nº 1, de 27 de março de 2020, que dispõe sobre diretrizes e recomendações quanto às medidas que possam ser adotadas pelos tribunais de contas, de modo uniforme e colaborativo com os demais poderes, para minimizar os efeitos internos e externos decorrentes do coronavírus (COVID-19), nos termos do art. 2o
inciso IX:

Art. 2º O desempenho dos papéis de fiscalização e controle deve ser continuado, adotando-se a cautela, a coerência e a adequação ao contexto da crise, preferencialmente de forma pedagógica, com a implementação, entre outras, das seguintes medidas:
(…)
IX – orientar e incentivar os seus jurisdicionados, em apoio ao SEBRAE, a adquirirem bens e serviços das micro e pequenas empresas.

No mesmo sentido, o Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina encaminhou Ofício Circular TCE/SC/GAP/PRES/4/2020 a todos os municípios catarinenses para que a administração municipal estabeleça tratamento diferenciado, nas aquisições públicas para as MPEs, neste momento de crise e incertezas, visando a manutenção dos negócios locais e, consequentemente, dos empregos dos concidadãos e da economia do município.
Já o Tribunal de Contas do Estado do Paraná, com objetivo de auxiliar gestores e servidores no embate da pandemia, elaborou um questionário online Info TCE-PR: Coronavírus afirmando que as contratações relacionadas com o enfrentamento da crise deverão respeitar as licitações diferenciadas previstas na LC nº 123/06, bem como nas
contratações de pequeno valor será necessário conceder preferência para as MPEs, nos termos do art. 49, inciso IV da LC nº 123/06, ainda que a dispensa se fundamente na Lei Federal nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020 (caso a contratação se refira a valores compreendidos nos limites dos artigos 24, incisos I e II da Lei Federal nº 8.666/93).
No tocante a contratações de pequeno valor, mediante dispensa de licitação, a Medida
Provisória nº 961, de 6 de maio de 2020, aumentou para R$ 100.000,00 (cem mil reais) os limites de obras e serviços de engenharia e para R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), os de outros serviços e compras durante o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020.
Importante considerar que alguns municípios promoveram o bloqueio do acesso da entrada de cidades para conter a disseminação do coronavírus, e outros limitaram a abertura e funcionamento de determinadas empresas, ampliando dessa forma o isolamento social e comercial, de modo que uma outra prerrogativa que ganha força nesse momento é aquela prevista no §3o do art. 48 da LC nº 123/06 que dispõe sobre a possibilidade de estabelecer a
prioridade de contratação para as microempresas e empresas de pequeno porte sediadas local ou regionalmente.
O art. 47 da LC nº 123/06 também dispõe sobre concessão de tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte objetivando a promoção do desenvolvimento econômico e social no âmbito municipal e regional.

Neste sentido, seria possível inclusive a realização de licitações para participação exclusiva de MPEs sediadas em determinado local ou região, nos termos do Prejulgado 27 do Tribunal de Contas do Estado do Paraná.
Do mesmo modo, o Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais possui inúmeros precedentes que considera plausível a limitação imposta à localização geográfica das empresas participantes do certame com o intuito de fomentar o comércio local e regional. (Denúncia nº 1066685 TCE/MG – 1ª Câmara, de 05.11.19; Denúncia nº 1058765 – 2ª Câmara, de 30.5.19, e Denúncia nº 980583 – 2ª Câmara, de 24.5.18).
É válido ressaltar que a Lei nº 13.979/20, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, expõe em seu art. 1o §1º que as medidas estabelecidas nesta lei objetivam a proteção da coletividade, ou seja, confere suporte para a contratação com MPEs locais ou regionais, visando a implementação dos objetivos propostos no art. 47 da LC nº 123/06 e protegendo determinado grupo.
Um tema de extrema relevância nesse momento é a possibilidade de pagamento antecipado nas contratações com MPEs, respeitando as condições previstas na Medida Provisória nº 961/20. Outra medida salutar é a efetiva implementação do adimplemento das contratações até R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) no prazo de até 5 (cinco) dias úteis, nos termos do art. 5o §3º da Lei nº 8.666/93, ambos com objetivo de fomentar a circulação de recursos de forma rápida e movimentar a economia de determinada localidade, reduzindo os efeitos deletérios da COVID-19.

O inadimplemento da Administração, o desrespeito à ordem cronológica de pagamento e a não atualização monetária no caso de atraso, são procedimentos que devem ser rechaçados, ainda mais em tempos de pandemia, cujo impacto financeiro e as consequências sociais podem atingir patamares e prejuízos incalculáveis.
A constante capacitação dos atores envolvidos no processo de compras é fundamental para consecução dos objetivos insculpidos nas normas, tanto de agentes e servidores públicos, quanto dos empresários.
Essa efetiva implementação das prerrogativas inerentes às MPEs nas contratações públicas é medida substancial para manter e preservar a existência dos pequenos negócios neste momento tão peculiar.

 

Christianne de Carvalho Stroppa
Doutora e Mestre pela PUC/SP, Professora de Direito Administrativo na PUC/SP, Assessora de Controle Externo no Tribunal de Contas do Município de São Paulo, Advogada.

José Roberto Tiossi Junior
Mestre em Direito pela UniCESUMAR, Professor de Direito Administrativo em cursos de Pós-Graduação, Advogado e Parecerista, Fundador do Portal Licitações Municipais.

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