Tema controverso, nem sempre bem compreendido e quase sempre tratado na esfera das opiniões extremas, de forma positiva ou negativa, as parcerias público-privadas estão na pauta das discussões institucional, econômica e política.
Longe da ribalta inflamada, das discussões apaixonadas, observando sua estrutura, potencialidades e limitações, a advogada Vera Monteiro, especialista em direito administrativo, analisa as experiências já implementadas ou em andamentos em unidades da Federação e quais são os limites claros necessários para a correta implementação dessa forma de o Estado contratar serviços em infra-estrutura.
Observadora privilegiada do processo que culminou na adoção da lei estadual de Minas Gerais que define os critérios para as PPPs, analisa o potencial deste recurso como fomentador de políticas públicas de investimento, mas sem perder o pé da análise fria e equilibrada. “A parceria público-privada não é a salvação da lavoura. É uma possibilidade a mais de celebração de contratos mais interessantes para o poder público.”
Licitação.com.br – Poderia nos fornecer uma visão mais exata do que é exatamente a parceria público-privada?
Vera Monteiro – A parceria público-privada é uma forma de colaboração entre o Estado e a iniciativa privada. É um conceito que não é novo, embora tenha ganhado visibilidade recentemente. É a forma pela qual o Estado pode comprar bens ou contratar serviços. De uma forma bem ampla uma parceria público-privada ocorre sempre que o Estado vai de alguma forma vai se beneficiar de algum insumo vindo da iniciativa privada. E existem diversas formas contratuais para isso ser feito. Seja através de um contrato, via Lei de Licitações 8.666, seja contrato administrativo, contrato de construção de obra, contrato de prestação de serviços ou contrato de compras.
Licitação -Então a PPP seria mais uma modalidade de licitação ou estaria englobada dentro das licitações?
Vera Monteiro – A parceria público-privada não é uma modalidade licitatória e sim uma modalidade de contratação. A contratação pode ser feita com base na Lei de Licitação 8.666 ou pode ser uma contratação diferente, com base, por exemplo, na Lei de Concessões 8.987/95. Esta lei tem sua aplicação quando o Estado resolve construir uma estrada e o faz isso por meio da iniciativa privada, que vai cobrar o pedágio para se ressarcir da execução da obra.
Mas, hoje, quando se fala em parceria público-privada está se querendo definir uma específica forma de contratação. Busca-se uma forma de refinar os conceitos expressos pelas leis 8.666/93 e 8.987/95, para um tipo específico de negócios. Quer se criar uma regra jurídica clara para permitir que o Estado contrate serviços em longo prazo. Ou seja, a nova legislação deverá deixar clara a possibilidade de o Estado celebrar contratos com duração de 20 ou 30 anos, cujo escopo específico seja a prestação de serviços por parte do parceiro privado. Para deixar claro, vamos dar um exemplo:
Se o Estado de São Paulo, hoje, quiser construir um presídio, o caminho é realizar uma licitação de obra, com base na Lei 8.666, em que o empreendedor será contratado para construir essa infra-estrutura e depois o Estado vai celebrar uma série de contratos complementares: um para prover a hotelaria do presídio, outro serviço de marmita, para limpeza, lavanderia…
Em uma parceria público-privada, o Estado celebra um único negócio, faz um único contrato, transferindo para o parceiro privado, a obrigação de buscar na iniciativa privada todos esses negócios que fazem parte do negócio maior, neste caso o presídio.
Ao contratar o parceiro privado, é transferida para ele toda a responsabilidade administrativa, dentro de uma perspectiva de longo prazo, no provimento de vagas no presídio, nas características que forem definidas em contrato. O Estado vai pagar ao parceiro privado durante 30 anos, pela administração para de vagas naquelas características que foram previamente definidas.
Licitação – Para que isso ocorra é necessário a criação de uma legislação específica?
Vera Monteiro – Não acredito que a idéia da parceria público-privada dependa de uma lei para ocorrer. O que eu acho da importância das leis que hoje estão tramitando no Congresso Nacional, na Assembléia Legislativa dos Estados, é um fator muito mais institucional que propriamente jurídico. Porque muitos desses negócios apenas serão possíveis por meio da parceria público-privada, já são possíveis por meio de uma interpretação mais moderna e atualizada das Leis 8.666 e 8.987.
Porque se fala tanto na necessidade de um marco legal? Por causa da necessidade de regras mais claras, que venham incentivar a administração pública a celebrar contratos com as características citadas. As leis que constituem o marco legal irão permitir maior segurança, tanto por parte do administrador público, quanto por parte da iniciativa privada, cujas preocupações giram em torno especialmente de um assunto: as garantias que serão oferecidas pelo Estado quando da celebração dos contratos.
Significa dizer, como o parceiro privado estará seguro de que um contrato de longo prazo não venha a ser extinto, seja por eventos políticos ou jurídicos. O parceiro privado quer a maior segurança possível e a possibilidade de blindar o seu contrato contra quaisquer ingerências políticas, alternância de poder e outros eventos.
Licitação – A garantia que a iniciativa privada busca não seria muito mais um fator de credibilidade que o Estado apresenta ou deixa de apresentar?
Vera Monteiro – Tudo depende dos mecanismos que garantam ao parceiro privado algum tipo de proteção a influências externas. No caso de o Estado não pagar, por exemplo, na alternância de poder; se um novo governador resolver não pagar um determinado contrato, é preciso uma forma de garantia.
Porque uma coisa é o empresário construir um prédio e se o inquilino não pagar basta procurar outro inquilino. Há um risco envolvido, que é compensado pela dinâmica de oferta e procura do mercado. Uma outra coisa é o empresário construir um presídio, quem é vai alugá-lo depois? Aí reside a idéia da parceria. O Estado precisa da iniciativa privada. A iniciativa privada quer bons negócios. O Estado deve lhe fornecer a possibilidade de bons negócios para atrair investimentos privados.
Devemos então considerar o modelo de PPP pelos seguintes prismas: o Estado não tem dinheiro para alguns investimentos. Se tivesse, bastaria a Lei 8.666. Vai lá, constrói e acabou. Esse é o primeiro dado. Em segundo lugar, com a PPP muda-se um pouco a idéia de pagamento ao parceiro privado. O Estado passará a pagar quando a empresa disponibilizar aquele serviço que está sendo contratado. Dessa forma, é feito um contrato em determinado instante, que será efetivamente utilizado em um prazo futuro, quando estiver pronta a infra-estrutura. Nesse momento zero é quando começará o pagamento.
Esse pagamento será diluído ao longo de todo período contratual. Por esse motivo são contratos de longo prazo, para diluição no pagamento ao parceiro privado do capital investido. A idéia é evitar que haja um impacto financeiro nas contas públicas, no momento da contratação.
Quando se faz um contrato pela Lei 8.666, é necessária a disponibilidade do dinheiro para pagamento na reserva orçamentária. O impacto financeiro é muito grande. Com o conceito de parceria transformam-se os contratos, não em valores de investimento, mas em despesa corrente. Por este motivo, argumenta-se que as PPPs poderiam livrar o Estado dos limites de superávit primário, os quais a administração pública assumiu cumprir.
Licitação – Nesse aspecto, se o pagamento pode ser feito ao longo de 30 anos, é necessário um cálculo anterior, há um ponto de equilíbrio, correto?
Vera Monteiro – São muitos interesses em jogo nesse contexto. O interesse do Estado é que a iniciativa privada faça o provimento de um serviço na qualidade estabelecida no contrato. Caso não haja a prestação do serviço na qualidade estabelecida pelo contrato, não haverá o pagamento. O objetivo do parceiro privado ao realizar um negócio com o poder público é o lucro. Enfim, um negócio como outro qualquer. A lógica é fazer com que esses dois interesses se mantenham colados ao longo do tempo. O equilíbrio financeiro desse negócio é um tema muito complexo, uma vez que é preciso planejar por longo prazo.
Tão complexo como fazer um trabalho de previsão de concessão de rodovia, por exemplo. No caso da rodovia, o concessionário é remunerado pelo pedágio. O pedágio tem que ser calculado para garantir o retorno do investimento feito. As concessões de rodovia são feitas por prazos tão longos quanto aqueles previstos para as PPPs.
Licitação – No sentido estrito em que foi citado, quando o conceito de PPP começou a ser disseminado?
Vera Monteiro – A idéia de criar parcerias público-privada (Public Private Partnership) vem do governo Margareth Tatcher [primeira-ministra britânica no período 1980-1988]. Esse conceito foi retomado pelo primeiro-ministro inglês Tony Blair. Os marcos legais, as iniciativas e a criação de órgãos governamentais para tratar dos projetos, foram realizados nestas duas gestões.
Não apenas é um tema muito presente nos debates sobre construção e infra-estrutura no governo inglês, como também gerador de muita controvérsia, mas é a forma que o governo da Inglaterra encontrou para realizar investimento nesta área. Em resumo, a parceria público-privada é uma forma específica de o Estado contratar investimento em infra-estrutura, com o pagamento diluído ao longo de um prazo extenso.
Licitação – Quanto à delimitação dos marcos regulatórios para o PPP, como a senhora observa os esforços do governo neste sentido?
Vera Monteiro – Percebo o governo muito empenhado, acreditando que o anteprojeto vai ser suficiente para fazer uma grande modificação e fazer uma mudança enorme de forma a garantir um investimento brutal em infra-estrutura.
Pessoalmente, acredito que o anteprojeto, por si só, não terá esse efeito, uma vez que não garante que haja um comprometimento privado na participação negócios. Percebo que o embate vai ser muito duro no Congresso, porque a iniciativa privada espera um pouco mais desse anteprojeto, com relação às garantias.
Licitação – Dado à complexidade de um contrato de PPP, será necessário elaboração de um texto de edital de igual maneira complexa.
Vera Monteiro – Assim como são complexos os editais das concessões. Neste terreno prevalece a lógica do contrato de concessão.
Licitação – Qual seria a principal diferença entre uma PPP, nesse sentido estrito que nós estamos tentando focar e a Lei de Concessões?
Vera Monteiro – Não há grande diferença, até porque a Lei 8.987 poderia ser usada para celebrar esses tipos de contrato. No entanto é uma lei um pouco enxuta, que não traz detalhes da forma contratual a qual chamamos de PPP. Embora não a proíba exatamente, a grande diferença do Anteprojeto da Lei Geral de Contratações da Administração Pública em relação à Lei de Concessões talvez seja o fato de deixar claro – o que na Lei de Concessões não é tão claro – que o Estado pode tirar dinheiro do bolso e pagar com recursos orçamentários contratos de longo prazo.