No início do ano as atenções do setor farmacêutico voltaram-se às medidas adotadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para a instituição do sistema de rastreamento de medicamentos – Sistema Nacional de Controle de Medicamentos. O tema debatido não é novo, a despeito de sua extrema relevância no cenário regulatório nacional. Em linhas gerais, o sistema de rastreamento tem por objetivo a criação de uma plataforma tecnológica que permita a identificação e o monitoramento dos medicamentos produzidos, dispensados ou comercializados em território nacional, desde a sua produção até o consumidor final. Por meio desse sistema será possível o controle mais eficaz e rigoroso contra falsificações e contrabando de medicamentos, além de contribuir para a sua dispensação mais segura.
A configuração do modelo de rastreamento vem sendo objeto de ampla discussão desde janeiro de 2009, a partir da publicação da Lei Federal nº 11.903, de 2009. Houve avanços nos últimos cinco anos, mas questões técnicas fundamentais ainda remanescem sem definição precisa, trazendo incertezas e questionamentos pertinentes quanto ao impacto das mudanças que se pretende implementar.
Diversas normas foram expedidas pela Anvisa para a regulamentação da matéria, tendo havido considerável polêmica quanto à obrigatoriedade inicial de inclusão de selos de segurança, aplicados como etiquetas autoadesivas nas embalagens dos medicamentos.
Equívocos cometidos no passado foram superados graças ao debate aberto pela Anvisa
Por determinação da Anvisa esses selos de segurança seriam fornecidos pela Casa da Moeda, o que ensejou críticas do setor produtivo farmacêutico quanto à defasagem dessa tecnologia e em relação aos custos carreados que impactariam os preços dos medicamentos, atingindo os consumidores. A controvérsia sobre os selos de segurança alcançou inclusive o Poder Judiciário até sua suspensão pela Anvisa em março de 2011, a partir da criação de um grupo de trabalho para aprofundamento do tema.
Após intensa análise das tecnologias disponíveis, foi publicada ao fim do ano passado a Resolução RDC nº 54, de 10 de dezembro de 2013, norma que regulamentou o Sistema Nacional de Controle de Medicamentos. Esta resolução definiu o prazo para entrada em vigor do sistema de rastreamento de medicamentos: dois anos para uma primeira fase de testes, a partir da publicação da norma, e três anos para a sua implantação integral, com a entrada em vigor da Resolução RDC nº 54/2013.
Em síntese, restou decidido que o rastreamento será realizado por meio de um sistema de identificação exclusivo dos produtos, prestadores de serviços e usuários, com o emprego de tecnologias de captura, armazenamento e transmissão eletrônica de dados. Abdicou-se dos selos de segurança, optando-se pela tecnologia de um código de barras bidimensional na embalagem (Datamatrix). Esse código de barras possibilitará a verificação de informações relacionadas ao número de registro do medicamento junto à Anvisa, número serial, data de validade e seu número de lote.
Embora a norma tenha avançado ao especificar a tecnologia escolhida pela Anvisa, diversas questões técnicas relevantes não foram devidamente esclarecidas pela Resolução RDC nº 54/2013. Em razão disso, a agência reguladora realizou em 23 de janeiro uma audiência pública para a discussão da proposta de instauração de um Comitê Gestor, responsável pelo aclaramento de pendências técnicas.
Instituído em 11 de fevereiro de 2014, com a publicação da Portaria nº 176 de 10 de fevereiro de 2014, este comitê será um órgão dotado de poder decisório, delegado pela diretoria da Anvisa, para estabelecer os critérios técnicos necessários à implantação do sistema de rastreamento de medicamentos, especialmente aqueles não esclarecidos pela Resolução RDC 54. A sua composição abrangerá representantes de diversos órgãos da administração pública, entidades do setor regulado, entre outros, sendo que todos possuirão direito a voto.
Merece ser registrada a iniciativa da Anvisa de dividir com segmentos do setor regulado a tarefa de traçar as diretrizes técnicas do novo sistema. O posicionamento da autarquia, frente a um tema regulatório intrincado, reflete a postura da agência de envidar esforços para estreitar o relacionamento com o setor, o que se afigura saudável.
Há de se ponderar, no entanto, o desacerto do momento escolhido pela Anvisa para a criação deste comitê gestor. A ressalva advém do fato de que significativos pontos técnicos ainda carecem de delimitação pelo comitê gestor, inobstante já esteja em curso o prazo para adaptação de indústrias, farmácias, hospitais e secretarias de saúde. Ou seja, a norma impôs o prazo para adaptação de todos os elos da cadeia, mas não esclareceu tudo aquilo que deveria. Certamente seria mais coerente que todos os critérios técnicos já estivessem definitivamente elucidados antes do início do prazo para entrada em vigor do sistema.
De qualquer forma, é positiva a discussão do tema propiciada pela Anvisa. Equívocos cometidos no passado, como a instituição obrigatória dos selos de segurança, foram superados graças ao debate aberto fomentado pela agência reguladora. Nesse horizonte, seria importante que as deliberações do comitê recebessem a devida publicidade, para que todos os agentes envolvidos possam contribuir de forma ativa para a moldura final do paradigma a ser implantado, dada a sua relevância para o aprimoramento do sistema nacional de saúde.
Joaquim Augusto Melo de Queiroz é advogado do escritório Fialdini Einsfeld Advogados
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(Fonte: Valor)