Lei de Responsabilidade Fiscal e o financiamento público

 

 

Por: Maurício Moura Portugal Robeiro
 

Enquanto na arena política se desdobram as investidas para alterar a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), cumpre aos juristas, longe do calor dos embates políticos, mapear, na lei vigente, as possibilidades deixadas aos Municípios e aos Estados para a geração lícita de receitas.

Uma opção das mais interessantes, mas ainda carente da atenção merecida, é a possibilidade de alienação de créditos não tributários, de titularidade dos Municípios ou Estados (originados, por exemplo, de contratos de concessão de serviços ou de uso de bens públicos). Tal opção encontra perfeita cabida na LRF e pode ser realizada, por quaisquer entes públicos (Estados, Municípios, respectivas autarquias, etc.), independentemente do seu nível de endividamento. A propósito, recentemente, o Governo do Estado de São Paulo, por meio do DER – Departamento de Estradas de Rodagem do Estado de São Paulo, valendo-se de tal possibilidade, realizou operação para venda de recebíveis de sua titularidade em face da Autoban, concessionária do complexo rodoviário Anhangüera-Bandeirantes, operação que contou com a anuência do Banco Central do Brasil e teve o BNDES como adquirente. Foi, ainda, acompanhada, mediante oportuno requerimento de informações, pelo Tribunal de Contas e pela Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo. Resultou desta operação um investimento de 180 milhões de reais nas obras do Rodoanel.

A LRF estabeleceu disciplina minudente das operações de crédito restringindo a sua realização, no que, aliás, seguiu o exemplo das regulações análogas que lhe serviram de inspiração (“Budget Enforcement Act”, criado em 1990, nos Estados Unidos da América; o “Fiscal Responsibility Act” da Nova Zelândia, de 1994; e, na União Européia, as disposições sobre o tema constantes do Tratado de Maastricht). Almejou-se, desta forma, evitar, ou pelo menos restringir, vezos lamentavelmente comuns nas administrações públicas – tais como, entre outros, a realização de operação de antecipação de receitas (sem a devida atenção às despesas futuras), a contratação de financiamentos para cobertura de dívida acumulada, etc. – que resultam, mais cedo ou mais tarde, em desequilíbrio nas contas públicas e em dilapidação do patrimônio público no pagamento de juros.

Ao dispor sobre as operações de crédito, a LRF estabeleceu os requisitos, limites e o procedimento para a contratação de tais operações. Adotou, para tanto, como definição de “operação de crédito” a transação da qual resulte compromisso financeiro. “Compromisso”, neste sentido, significa obrigação, vínculo cujo desenlace demanda o cumprimento de dever futuro. Só geram compromisso, desta perspectiva, negócios que impliquem em assunção de obrigações a serem cumpridas no futuro. A compra e venda à vista de recebíveis (créditos sem garantia da sua solvência pelo vendedor) não gera, deste ponto de vista, qualquer compromisso financeiro. Uma vez que o vendedor (credor originário) não se responsabiliza pelas conseqüências do não pagamento pelo devedor, a operação não gera (para o vendedor) qualquer compromisso financeiro.

 

É como se alguém que detivesse um crédito representado por uma nota promissória vendesse tal crédito simplesmente entregando a nota ao comprador, eximindo-se mesmo, contratualmente, da responsabilidade pelo seu efetivo pagamento. O comprador recebe, portanto, neste caso, o crédito sem qualquer garantia daquele que lhe vendeu, no que tange à capacidade e à possibilidade do devedor saldá-lo. Compra, pois, o crédito assumindo o risco de que o devedor não venha a realizar o pagamento.

Note-se que, neste caso, a operação de venda do crédito não gera para qualquer das partes (vendedor e comprador) nenhum compromisso financeiro, pois não há adiamento do cumprimento do dever de qualquer das partes. Desincumbem-se, ambas, das respectivas obrigações no mesmo instante: o comprador pagando em numerário; e, o vendedor transferindo, de logo, a titularidade dos créditos. É por isso, que apesar de envolver créditos, esta operação não realiza – nos termos da LRF e do direito privado – “operação de crédito”, como, aliás, perceberam o Banco Central e o BNDES, no que toca à venda dos créditos do DER em face da Autoban.

Rigorosamente, a venda de créditos sem garantia da solvabilidade enquadra-se, na LRF, como mera venda de bens, de ativos. Neste ponto, a LRF não estabelece maiores restrições: apenas exige que o produto da alienação não seja utilizado para prover “despesas correntes”, ou seja despesas como, por exemplo, o pagamento de pessoal, a aquisição de material de consumo, o pagamento de serviços de terceiros e encargos diversos. Possível é, pois, nos termos da LRF, por exemplo, aplicar o produto da venda de créditos em investimentos tais como a realização de obras públicas, a contratação de serviços em regime de programação especial, a aquisição de equipamentos, instalações e material permanente, e a participação em constituição ou aumento de capital de empresas ou entidades industriais e agrícolas.

A alienação de créditos de entes públicos – como, aliás, qualquer venda de bens de sua propriedade – exige a realização de prévia avaliação e submissão a procedimento de licitação.

A alienação de créditos sem garantia da solvabilidade, por todas as características já expostas, parece-nos uma opção extremamente simples que pode funcionar como um excelente paliativo a ser ministrado aos Municípios e aos Estados, contra os tão divulgados males da LRF. A venda de recebíveis, se utilizada com cautela, pode vir a ser um instrumento extremamente útil neste período de convalescença dos Estados e Municípios, enquanto ainda sofrem as conseqüências da irresponsabilidade fiscal das gestões passadas. Conta, de mais a mais, em seu favor, com o indiscutível sucesso da recente operação de alienação dos créditos efetuada pelo Governo do Estado de São Paulo que viabilizou vultoso aporte de recursos nas obras do Rodoanel.

 

 

 

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